30/09/2020

Cristãos do Porto oram juntos pela Criação, em ano de “Jubileu pela Terra”

Unidos a uma grande corrente de oração e ação, pela salvaguarda da Criação, vivida por milhares de Cristãos em todo o mundo, no Tempo da Criação, celebrado entre os dias 1 de setembro e 4 de outubro, a Comissão Ecuménica do Porto, através do Roteiro Ecuménico de Oração, promoveu no dia 23 de setembro, na Paróquia Lusitana do Salvador do Mundo (Gaia), uma Oração Ecuménica, que reuniu líderes e povo das Igrejas Católica, Lusitana, Metodista, Evangélica Alemã e Ortodoxa Russa. Devido às medidas de contingência, e com o objetivo de chegar a mais pessoas, a Celebração foi transmitida nas redes sociais.
A reflexão esteve a cargo do Bispo Auxiliar do Porto e atual responsável pela área do Ecumenismo da Conferência Episcopal Portuguesa, D. Armando Esteves.
Como referiu D. Armando, «tudo está conectado. O ser humano não está dissociado da Terra ou da natureza, eles são partes de um mesmo todo. Portanto, destruir a natureza equivale a destruir o homem. E destruir o homem, é atentado à própria imagem de Deus. Da mesma forma, não é possível falar em proteção ambiental sem que esta envolva também a proteção ao ser humano, em especial os mais pobres, vulneráveis e os refugiados do clima»
Pequenas árvores, junto com outros símbolos da Criação, foram apresentadas por cada uma das Igrejas comprometidas na construção da unidade, nesta Casa Comum que habitamos, e, no final, em jeito de envio e compromisso, cada líder, recebeu uma árvore com missão de a plantar e cuidar, como bom jardineiro de Deus.

Comissão Ecuménica do Porto


20/09/2020

«Percorri um caminho de conversão, de compreensão do problema ecológico»

Discurso do Papa Francisco na audiência a um grupo de peritos que colaboram com a Conferência dos Bispos de França sobre o tema da Laudato si'


Estou grato a todos vós pela vossa visita e agradeço ao Senhor Presidente do Episcopado.
Vejo que cada um de vós tem a tradução do que vou dizer. E parte da conversão ecológica consiste em não perder tempo. É por isso que tendes o texto oficial. Agora prefiro falar espontaneamente. Entrego o original.
Gostaria de começar com um fragmento de história. Em 2007 teve lugar a Conferência do Episcopado Latino-Americano no Brasil, em Aparecida. Fiz parte do grupo de redatores do documento final, e chegavam propostas sobre a Amazónia. Eu disse: «Mas estes brasileiros, como aborrecem com esta Amazónia! O que tem a Amazónia a ver com a evangelização?». Eu era assim em 2007. Depois, em 2015, saiu a Laudato si’. Percorri um caminho de conversão, de compreensão do problema ecológico. Antes eu não entendia nada!
Quando fui a Estrasburgo, à União Europeia, o Presidente Hollande pediu à Ministra do Meio Ambiente, Ségolène Royale, que me recebesse. Falamos no aeroporto... No início um pouco, porque já havia o programa, mas depois, no final, antes de partir, tivemos de esperar um pouco e falamos mais. E a Senhora Ségolène Royale disse-me o seguinte: «É verdade que o Senhor está a escrever algo sobre a ecologia? — c’était vrai! — Por favor, publique-a antes do encontro de Paris!».
Chamei o grupo de pessoas que a redigia — para que saibais que não a escrevi sozinho, mas com um grupo de cientistas, um grupo de teólogos, e todos juntos fizemos esta reflexão — chamei o grupo e disse: «Tem que sair antes do encontro de Paris» —  «Mas porquê?» — «Para fazer pressão». De Aparecida à Laudato si’, para mim foi um caminho interior.
Quando comecei a pensar nesta Encíclica, chamei os cientistas — um bom grupo — e disse-lhes: «Dizei-me coisas claras e comprovadas, não hipóteses, mas realidades». E eles trouxeram o que hoje vós ledes aqui. Em seguida, chamei um grupo de filósofos e teólogos [e disse-lhes]: «Gostaria de fazer uma reflexão sobre isto. Trabalhai vós e dialogai comigo». E eles realizaram o primeiro trabalho, depois eu intervim. E, no final, fiz a redação conclusiva. Essa é a origem.
Mas quero frisar isto: da absoluta incompreensão, em Aparecida em 2007, à Encíclica. Gosto de dar testemunho disto. Temos que trabalhar para que todos percorram este caminho de conversão ecológica.
Depois veio o Sínodo sobre a Amazónia. Quando fui à Amazónia, encontrei muitas pessoas. Fui a Puerto Maldonado, na Amazónia peruana. Falei com as pessoas, com muitas culturas indígenas diferentes. Depois almocei com 14 caciques deles, todos com plumas, trajados segundo a tradição. Falavam com uma linguagem de sabedoria e de inteligência muito elevadas! Não só de inteligência, mas de sabedoria. E depois perguntei: «Qual é a sua profissão?» — «Sou professor na universidade». Um indígena que ali usava plumas, mas na universidade andava à paisana. «E a Senhora?» — «Sou a responsável pelo ministério da educação em toda esta região». E assim, um após o outro. E depois uma jovem: «Sou uma estudante de ciências políticas». E ali vi que era necessário eliminar a imagem dos índios que nós só vemos com setas. Lado a lado, descobri a sabedoria dos povos indígenas, inclusive a sabedoria do “bem viver”, como lhe chamam. O “bem viver" não é a boa vida, não, não é a ociosidade, não. O “bem viver” consiste em viver em harmonia com a criação. E nós perdemos esta sabedoria do “bem viver”. Os povos originários abrem-nos esta porta. E alguns anciãos dos povos originários do oeste do Canadá queixam-se que os seus netos partem para a cidade e abraçam a modernidade, esquecendo-se das raízes. E isto esquecimento das raízes é um drama não só dos aborígenes, mas também da cultura contemporânea.
E assim, é preciso encontrar esta sabedoria que talvez tenhamos perdido com demasiada inteligência. Nós — é uma lástima — somos “macrocéfalos”: muitas das nossas universidades ensinam-nos ideias, conceitos... Somos herdeiros do liberalismo, do iluminismo... E perdemos a harmonia das três linguagens. A linguagem da cabeça: pensar; a linguagem do coração: sentir; a linguagem das mãos: fazer. E promover esta harmonia, para que todos pensem o que sentem e fazem; que todos sintam o que pensam e fazem; que todos façam o que sentem e pensam. Esta é a harmonia da sabedoria. Não é um pouco a desarmonia — mas não digo isto em sentido pejorativo — das especializações. Os especialistas são necessários, são necessários, contanto que estejam enraizados na sabedoria humana. Erradicados desta sabedoria, os especialistas são robôs.
Recentemente, falando sobre a inteligência artificial — no Dicastério para a Cultura dispomos de um grupo de estudo de nível alto, muito alto — uma pessoa perguntou-me: «Mas será a inteligência artificial capaz de fazer tudo?» — «Os futuros robôs serão capazes de fazer tudo o que uma pessoa faz. Exceto o quê? — disse eu — o que não poderão fazer?». Ela refletiu um pouco e disse-me: «Só uma coisa eles não poderão ter: ternura». E a ternura é como a esperança. Como diz Péguy, trata-se de virtudes humildes. São virtudes que acariciam, que não afirmam... E creio — gostaria de ressaltar — que, na nossa conversão ecológica, devemos trabalhar nesta ecologia humana; trabalhar na nossa ternura e capacidade de acariciar... Tu, com os teus filhos... A capacidade de acariciar, algo ligado ao viver bem, em harmonia.
Além disso, gostaria de dizer mais uma coisa sobre a ecologia humana. A conversão ecológica faz-nos ver a harmonia geral, a correlação de tudo: tudo está interligado, tudo está correlacionado. Nas nossas sociedades humanas, perdemos este sentido da correlação humana. Sim, há associações, grupos — como o vosso — que se reúnem para fazer algo... Mas refiro-me àquele relacionamento fundamental que cria a harmonia humana. E muitas vezes perdemos o sentido das raízes, da pertença. O sentido da pertença. Quando um povo perde o sentido das raízes, perde a própria identidade — Mas não! Somos modernos! Pensemos nos nossos avós, nos nossos bisavós... Coisas antigas! — Mas existe outra realidade, que é a história; existe a pertença a uma tradição, a uma humanidade, a um estilo de vida... Por isso, hoje é muito importante cuidar disto, cuidar das raízes da nossa pertença, para que os frutos sejam bons.
Por isso, hoje mais do que nunca, é necessário o diálogo entre avós e netos. Isto pode parecer um pouco estranho, mas se um jovem — sois todos jovens aqui — não tiver o sentido de uma relação com os avós, o sentido das raízes, não terá a capacidade de continuar a própria história, a humanidade, e acabará por ceder a um acordo, a um compromisso, com as circunstâncias. A harmonia humana não tolera pactos de compromisso. Sim, a política humana — que é outra arte necessária — faz-se desta forma, com compromissos, porque pode levar todos em frente. Mas a harmonia não. Se não tiveres raízes, a árvore não crescerá. Um poeta argentino, Francisco Luis Bernárdez — já falecido, um dos nossos grandes poetas — diz: «Todo lo que el árbol tiene de florido vive de lo que tiene sepultado». Se a harmonia humana dá frutos, é porque tem raízes.
E por que o diálogo com os avós? Posso falar com os pais, isto é muito importante! Falar com os pais é muito importante. Mas os avós têm algo mais, como o bom vinho. Quanto mais velho é o vinho, tanto melhor se torna. Vós, franceses, sabeis estas coisas, não é verdade? Os avós têm esta sabedoria. Sempre me impressionou o trecho do Livro de Joel: «Os avós sonharão. Os idosos sonharão e os jovens profetizarão». Os jovens são profetas. Os idosos são sonhadores. Parece o contrário, mas não é assim! Contanto que os idosos e os avós falem uns com os outros. É nisto que consiste a ecologia humana.
É uma lástima, mas temos de terminar, pois também o Papa é escravo do relógio! Mas eu quis dar este testemunho da minha história, dizer estas coisas, para ir em frente. E a palavra-chave é harmonia. E a palavra-chave humana é ternura, a capacidade de acariciar. A estrutura humana é uma das numerosas estruturas políticas que são necessárias. A estrutura humana é o diálogo entre os idosos e os jovens.
Obrigado pelo que levais a cabo. Aprouve-me enviar este [discurso escrito] para o vosso arquivo — lede-o mais tarde — e dizer, do fundo do coração, o que eu sinto. Parecia-me mais humano. Desejo-vos o melhor. Et priez pour moi. J’en ai besoin. Ce travail n’est pas facile. Et que le Seigneur benisse vous tous!

3 de setembro de 2020.

Francisco

08/09/2020

Ações comuns para salvar o planeta

Mensagem do Patriarca de Constantinopla por ocasião do início do novo ano eclesiástico e do Dia de oração pela proteção do meio ambiente


Caríssimos irmãos hierarcas e amados filhos no Senhor, é uma convicção comum que, no tempo presente, o meio ambiente está ameaçado mais do que nunca na história da humanidade. A amplitude desta ameaça manifesta-se na constatação de que quanto está em jogo já não é a qualidade, mas a preservação da vida no nosso planeta. Pela primeira vez na história, o homem é capaz de destruir as condições de vida na Terra. As armas nucleares constituem o símbolo do titanismo prometeico do homem, a expressão tangível do “complexo de omnipotência” do “homem-deus” contemporâneo.
No uso do poder que deriva da ciência e da tecnologia, hoje revela-se a ambivalência da liberdade humana. A ciência serve a vida; contribui para o progresso, para debelar doenças e muitas condições até agora consideradas “fatais”; cria novas perspetivas positivas para o futuro. Mas, ao mesmo tempo, oferece ao homem meios extremamente poderosos, cujo uso impróprio pode ser transformado em destruidor. Experimentamos o avanço da destruição do meio ambiente, da biodiversidade, da flora e da fauna, da poluição dos recursos aquáticos e da atmosfera, o colapso progressivo do equilíbrio climático, assim como outras formas de superação de limites e medidas em muitas dimensões da vida. De modo correto e maravilhoso, o santo e grande Concílio da Igreja ortodoxa (Creta, 2016) decretou que «o conhecimento científico não mobiliza a vontade moral do homem, o qual conhece os perigos mas continua a agir como se não os conhecesse» (Encíclica, 11).
É evidente que a salvaguarda do bem comum, da integridade do meio ambiente, é responsabilidade comum de todos os habitantes da Terra. O categórico imperativo contemporâneo para a humanidade é viver sem destruir o meio ambiente. No entanto, enquanto no plano pessoal e a nível de numerosas comunidades, grupos, movimentos e organizações existe uma demonstração de grande sensibilidade e responsabilidade ecológica, as nações e os agentes económicos não são capazes — em nome das ambições geopolíticas e da “autonomia da economia” — de tomar decisões corretas para a tutela da criação e, ao contrário, cultivam a ilusão de que a presumível “destruição ecológica global” é uma invenção ideológica de movimentos ecológicos e que o meio ambiente tem o poder de se renovar. Contudo, subsiste a questão crucial: por quanto tempo a natureza suportará debates e consultas infrutíferas, bem como qualquer outro atraso na tomada de medidas decisivas para a sua proteção?
Observamos que, durante o período da pandemia do novo coronavírus Covid-19, com as restrições obrigatórias à circulação, o fechamento das fábricas e a diminuição da atividade e da produção industrial, houve uma redução da poluição e do seu peso na atmosfera, e isto demonstrou o caráter antropogénico da crise ecológica contemporânea. Tornou-se mais uma vez evidente que a indústria, os meios de transporte atuais, o automóvel e o avião, a prioridade não negociável dos indicadores económicos, e assim por diante, têm um impacto negativo sobre o equilíbrio ambiental e que uma mudança de rumo para uma economia ecológica constitui uma necessidade firme. Não existe progresso real algum, fundado na destruição do meio ambiente. É inconcebível que as decisões económicas sejam tomadas sem ter em consideração inclusive as suas consequências ecológicas. O desenvolvimento económico não pode permanecer um pesadelo para a ecologia. Estamos certos de que existe uma forma alternativa de estrutura e progresso económico, para além do economismo e da orientação da atividade económica para a maximização do lucro.
O futuro da humanidade não é o homo œconomicus. O patriarcado ecuménico, que nas últimas décadas foi pioneiro no campo da tutela da criação, dará continuidade às suas iniciativas ecológicas, à organização de conferências sobre a ecologia, à mobilização dos seus fiéis e sobretudo dos jovens, à promoção da salvaguarda do meio ambiente como tema fundamental para o diálogo inter-religioso e as iniciativas conjuntas das religiões, o colóquio com os líderes políticos e as instituições, a cooperação com organizações ambientalistas e movimentos ecológicos. É evidente que a cooperação para a proteção do meio ambiente cria novas formas de comunicação e possibilidades de ulteriores ações conjuntas.
Reiteramos que as atividades ambientais do patriarcado ecuménico representam uma extensão da sua autoconsciência eclesiológica e não constituem a simples reação circunstancial a um novo fenómeno. A própria vida da Igreja é uma ecologia aplicada. Os sacramentos da Igreja, toda a sua vida de culto, o seu ascetismo e a vida comunitária, a vida diária dos seus fiéis, exprimem e geram o mais profundo respeito pela criação. A sensibilidade ecológica da ortodoxia não foi criada mas surgi da crise ambiental contemporânea. A luta pela tutela da criação é uma dimensão fulcral da nossa fé. O respeito pelo meio ambiente constitui um ato de doxologia do nome de Deus, enquanto que a destruição da criação é uma ofensa contra o Criador, totalmente inconciliável com os princípios fundamentais da teologia cristã.
Distintos irmãos e amados filhos, os valores favoráveis à ecologia da tradição ortodoxa, precioso legado dos Padres, constituem um obstáculo contra a cultura, cujo fundamento axiológico é o domínio do homem sobre a natureza. A fé em Cristo inspira e fortalece o compromisso humano, inclusive face aos imensos desafios. Da ótica da fé, somos capazes de descobrir e avaliar não apenas as dimensões problemáticas, mas também as possibilidades e perspetivas positivas da civilização contemporânea. Pedimos aos jovens, homens e mulheres, ortodoxos que compreendam a importância de viver como cristãos fiéis e pessoas contemporâneas. A fé no destino eterno do homem reforça o nosso testemunho no mundo.
É neste espírito que, do Fanar, desejamos a todos vós um novo ano eclesiástico propício e abençoado, fecundo de gestos a exemplo de Cristo, para o bem de toda a criação e para a glória do omnisciente Criador de todas as coisas. E invocamos sobre vós, através das intercessões da Santíssima Theotokos, da Pammakaristos, a graça e a misericórdia do Deus das maravilhas.

1 de setembro de 2020

Bartolomeu

L'Osservatore RomanoEdição portuguesa (8 de setembro de 2020) 4.

01/09/2020

Mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação

Foto de Pawan Kawan em Unsplash
«Santificareis o quinquagésimo ano, proclamando na vossa terra a liberdade
de todos os que a habitam. Este ano será para vós um Jubileu» (Lv 25, 10).

Queridos irmãos e irmãs,
Anualmente, sobretudo desde a publicação da carta encíclica Laudato si’ (24/5/2015; daqui em diante, citada com a sigla LS), o primeiro dia de setembro assinala, para a família cristã, o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação; e com ele se abre o Tempo da Criação que se conclui no dia 4 de outubro, memória de São Francisco de Assis. Durante este período, os cristãos renovam em todo o mundo a fé em Deus criador e unem-se de maneira especial na oração e na ação pela preservação da casa comum.
Alegro-me com o tema escolhido pela família ecuménica para a celebração do Tempo da Criação 2020, ou seja, um "Jubileu pela Terra", tendo em vista que se celebra precisamente este ano o quinquagésimo aniversário do Dia da Terra.
Na Sagrada Escritura, o Jubileu é um tempo sagrado para recordar, regressar, repousar, restaurar e rejubilar.

1. Um tempo para recordar


Somos convidados a lembrar sobretudo que o destino último da criação é entrar no "sábado eterno" de Deus. É uma viagem que se realiza no tempo, abraçando o ritmo dos sete dias da semana, o ciclo dos sete anos e o grande Ano Jubilar que sobrevém ao concluírem-se os sete anos sabáticos.
Depois o Jubileu é um tempo de graça para recordar a vocação primordial da criação: ser e prosperar como comunidade de amor. Existimos apenas graças às relações com Deus criador, com os irmãos e irmãs enquanto membros duma família comum e com todas as criaturas que habitam na mesma casa que nós. «Tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma das suas criaturas e que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe terra» (LS, 92).
Por isso o Jubileu é um tempo para a recordação, repassando na memória a nossa existência inter-relacional. Temos necessidade constante de nos lembrar que «tudo está inter-relacionado e o cuidado autêntico da nossa própria vida e das nossas relações com a natureza é inseparável da fraternidade, da justiça e da fidelidade aos outros» (LS, 70).

2. Um tempo para regressar


O Jubileu é um tempo para voltar atrás e arrepender-se. Quebramos os laços que nos uniam ao Criador, aos outros seres humanos e ao resto da criação. Precisamos de sarar estas relações danificadas, que são essenciais para sustentáculo de nós mesmos e de toda a trama da vida.
O Jubileu é um tempo de regresso a Deus, nosso criador amoroso. Não é possível viver em harmonia com a criação, sem estar em paz com o Criador, fonte e origem de todas as coisas. Como observou o Papa Bento XVI, «o consumo brutal da criação começa lá onde Deus não está, onde a matéria já é somente material para nós, onde nós mesmos somos a última instância, onde o conjunto é simplesmente nossa propriedade» (Encontro com o Clero da diocese de Bolzano-Bressanone, 06/7/2008).
O Jubileu convida-nos a pensar novamente nos outros, especialmente nos pobres e nos mais vulneráveis. Somos chamados a acolher de novo o plano primordial e amoroso de Deus para a criação como uma herança comum, um banquete que deve ser partilhado com todos os irmãos e irmãs em espírito de convivialidade; não numa competição desatinada, mas numa comunhão jubilosa, onde nos apoiamos e protegemos mutuamente. O Jubileu é um tempo para dar liberdade aos oprimidos e a quantos estão acorrentados aos grilhões das várias formas de escravidão moderna, nomeadamente o tráfico de pessoas e o trabalho infantil.
Além disso precisamos de voltar a ouvir a terra, expressa na Sagrada Escritura pelo termo adamah, o lugar donde foi tirado Adam, o homem. Hoje, a voz da criação incita-nos, alarmada, a regressar ao lugar certo na ordem natural, lembrando-nos que somos parte, não patrões, da rede interligada da vida. A desintegração da biodiversidade, o aumento vertiginoso de catástrofes climáticas, o impacto desproporcionado que tem a pandemia atual sobre os mais pobres e frágeis são sinais de alarme perante a avidez desenfreada do consumo.
De modo particular durante este Tempo da Criação, ouçamos o pulsar da criação. Com efeito, esta nasceu para manifestar e comunicar a glória de Deus, para nos ajudar a encontrar na sua beleza o Senhor de todas as coisas e regressar a Ele (cf. São Boaventura, In II Sent., I, 2,2, q. 1, concl; Brevil., II, 5.11). Por isso, a terra da qual fomos tirados é lugar de oração e meditação: «despertemos o sentido estético e contemplativo que Deus colocou em nós» (Francisco, Exort. ap. Querida Amazonia, 56). A capacidade de contemplar e nos maravilharmos é algo que podemos aprender especialmente dos irmãos e irmãs indígenas, que vivem em harmonia com a terra e as suas variadas formas de vida.


3. Um tempo para repousar


Deus, na sua sabedoria, reservou o dia de sábado para que a terra e os seus habitantes pudessem descansar e restaurar-se. Hoje, porém, os nossos estilos de vida forçam o planeta para além dos seus limites. A procura contínua de crescimento e o ciclo incessante da produção e do consumo estão a extenuar o ambiente. As florestas dissipam-se, o solo torna-se erosivo, os campos desaparecem, os desertos avançam, os mares tornam-se ácidos e as tempestades intensificam-se: a criação geme!
Durante o Jubileu, o Povo de Deus era convidado a repousar dos seus trabalhos habituais, para deixar – graças à diminuição do consumo habitual – que a terra se regenerasse e o mundo reentrasse na ordem. Hoje precisamos de encontrar estilos de vida équos e sustentáveis, que restituam à Terra o repouso que lhe cabe, vias de subsistência suficientes para todos, sem destruir os ecossistemas que nos sustentam.
De algum modo a pandemia atual levou-nos a redescobrir estilos de vida mais simples e sustentáveis. A crise deu-nos, em certo sentido, a possibilidade de desenvolver novas maneiras de viver. Foi possível constatar como a Terra consegue recuperar, se a deixarmos descansar: o ar tornou-se mais puro, as águas mais transparentes, as espécies animais voltaram para muitos lugares donde tinham desaparecido. A pandemia levou-nos a uma encruzilhada. Devemos aproveitar este momento decisivo para acabar com atividades e objetivos supérfluos e destrutivos, e cultivar valores, vínculos e projetos criadores. Devemos examinar os nossos hábitos no uso da energia, no consumo, nos transportes e na alimentação. Devemos retirar, das nossas economias, aspetos não essenciais e nocivos, e criar modalidades vantajosas de comércio, produção e transporte dos bens.

4. Um tempo para restaurar


O Jubileu é um tempo para restaurar a harmonia primordial da criação e para curar relações humanas comprometidas.
Convida a restabelecer relações sociais equitativas, restituindo a cada um a sua liberdade e os bens próprios, e perdoando as dívidas dos outros. Por isso não devemos esquecer a história de exploração do Sul do planeta, que provocou um enorme deficit ecológico, devido principalmente à depredação dos recursos e ao uso excessivo do espaço ambiental comum para a eliminação dos resíduos. É o tempo duma justiça reparadora. A este respeito, renovo o meu apelo para se cancelar a dívida dos países mais frágeis, à luz do grave impacto das crises sanitárias, sociais e económicas que aqueles têm de enfrentar na sequência do vírus Covid-19. É necessário ainda assegurar que os incentivos para a recuperação, em fase de elaboração e implementação a nível mundial, regional e nacional, se tornem realmente eficazes mediante políticas, legislações e investimentos centrados no bem comum e com a garantia de se alcançar os objetivos sociais e ambientais globais.
De igual modo é preciso restaurar a terra. O restabelecimento dum equilíbrio climático é extremamente importante, vista a urgência em que nos encontramos. Estamos a ficar sem tempo, como nos lembram os nossos filhos e os jovens. Tem-se de fazer todo o possível para manter o aumento da temperatura média global abaixo do limite de 1,5 graus centígrados, como ficou consagrado no Acordo de Paris sobre o Clima: ultrapassar tal limite revelar-se-á catastrófico, sobretudo para as comunidades mais pobres em todo o mundo. Neste momento crítico, é necessário promover uma solidariedade intra e intergeracional. Como preparação para a importante Cimeira do Clima em Glasgow, no Reino Unido (COP 26), convido cada país a adotar metas nacionais mais ambiciosas para reduzir as emissões.
O restabelecimento da biodiversidade é igualmente crucial no contexto duma extinção de espécies e uma degradação dos ecossistemas sem precedentes. É necessário apoiar o apelo das Nações Unidas para preservar 30% da Terra como habitat protegido até 2030, a fim de conter a taxa alarmante de perda da biodiversidade. Exorto a comunidade internacional a colaborar para garantir que a Cimeira sobre a Biodiversidade (COP 15) de Kunming, na China, constitua um ponto de viragem no sentido do restabelecimento da Terra como casa onde, segundo a vontade do Criador, a vida seja abundante.
Somos obrigados a reparar segundo justiça, garantindo, a quantos habitaram uma terra durante gerações, que possam recuperar plenamente a sua utilização. É preciso proteger as comunidades indígenas de empresas, particularmente multinacionais, que, com a extração perniciosa de combustíveis fósseis, minerais, madeira e produtos agroindustriais, «fazem nos países menos desenvolvidos aquilo que não podem fazer nos países que lhes dão o capital» (LS, 51). Esta má conduta das empresas representa um «novo tipo de colonialismo» (São João Paulo II, Discurso à Academia Pontifícia das Ciências Sociais, 27/IV/2001, citado na Exort. ap. Querida Amazonia, 14), que explora vergonhosamente comunidades e países mais pobres a braços com uma busca desesperada de desenvolvimento económico. É necessário consolidar as legislações nacionais e internacionais, para que regulamentem as atividades das empresas extrativas e garantam o acesso à justiça aos prejudicados.

5. Um tempo para rejubilar


Na tradição bíblica, o Jubileu constitui um acontecimento festivo, inaugurado por um som de tromba que ressoa por toda a terra. Sabemos que o clamor da Terra e dos pobres se tornou, nos anos passados, ainda mais rumoroso. Simultaneamente somos testemunhas do modo como o Espírito Santo está inspirando por todo o lado indivíduos e comunidades a unirem-se para reconstruir a casa comum e defender os mais vulneráveis. Assistimos ao surgimento gradual duma grande mobilização de pessoas que, partindo de baixo e das periferias, se estão empenhando generosamente em prol da proteção da terra e dos pobres. É uma alegria ver tantos jovens e comunidades, especialmente indígenas, na linha da frente para dar resposta à crise ecológica. Apelam por um Jubileu da Terra e um novo começo, cientes de que «as coisas podem mudar» (LS, 13).
Temos ainda motivo para nos alegrar quando constatamos como o Ano especial de aniversário da Laudato si' está a inspirar numerosas iniciativas a nível local e global em prol do cuidado da casa comum e dos pobres. Este ano deveria levar a planos operacionais de longo prazo, para chegar a haver uma ecologia integral nas famílias, paróquias, dioceses, ordens religiosas, escolas, universidades, cuidados da saúde, empresas, fazendas agrícolas e em muitas outras áreas.
Regozijamo-nos também com as comunidades de crentes que se estão dando as mãos para criar um mundo mais justo, pacífico e sustentável. É motivo de particular alegria que o Tempo da Criação se esteja a tornar uma iniciativa verdadeiramente ecuménica. Continuemos a crescer na consciência de que todos moramos numa casa comum enquanto membros da mesma família!
Alegremo-nos porque o Criador, no seu amor, sustenta os nossos humildes esforços em prol da Terra. Esta é também a casa de Deus, onde a sua Palavra «Se fez carne e veio habitar connosco» (Jo 1, 14), o lugar que a efusão do Espírito Santo renova sem cessar.

«Enviai, Senhor, o vosso Espírito e renovai a face da terra» (cf. Sal 104/103, 30).

Roma, em São João de Latrão, 1 de setembro de 2020.

Francisco