29/10/2016

Comemorar o V Centenário da Reforma

A 31 de outubro de 2016 abriram-se em Lund, na Suécia, as comemorações dos 500 anos da Reforma protestante, que se encerrarão na mesma data do próximo ano, cinco séculos depois da publicação por Lutero das 95 teses sobre as indulgências. A estas comemorações quis associar-se o papa Francisco, marcando também ele presença em Lund, lado a lado com o bispo Munib Younan, presidente da Federação Luterana Mundial, o arcebispo luterano de Uppsala Antje Kackelén e o bispo católico de Estocolmo Anders Arborelius.
Pode perguntar-se desde logo pelo sentido do envolvimento católico-romano no jubileu da Reforma quando a data evoca uma rutura secular na comunhão eclesial, ainda hoje não superada. Obviamente que não significa fazer festa pela laceração ocorrida, da mesma forma que, por exemplo, o centenário da I Guerra Mundial não se presta a festejar a violência inusitada ou as vítimas que nela caíram. Há, contudo, uma evocação que se justifica também para os acontecimentos menos luminosos. As comemorações da Reforma podem, assim, unir católicos romanos e luteranos, também porque, mesmo não olhando para o acontecimento com os mesmos olhos, não deixam de lamentar a fratura eclesial. Há, para além disso, uma consciência recíproca de responsabilidades partilhadas num contexto político-eclesial complexo.
O V centenário da Reforma não deixa, contudo, também de trazer à luz o caminho andado nas sendas da unidade, assim como a evolução do modo como Lutero foi visto ao longo do tempo. Os seus contemporâneos trilharam caminhos apologéticos tecidos de juízos contrastantes e agressivos. Se os seus partidários viram nele o Moisés alemão, o anjo do Apocalipse ou o quinto evangelista, o catolicismo romano tinha-o por percursor do anticristo, instrumento do demónio, herético por excelência ou reiterado demagogo. O passar dos séculos encarregar-se-ia ainda de repercutir sobre Lutero o espírito de cada tempo, como evidenciam as leituras iluministas ou românticas do reformador, mas quase sem passos na reconciliação das partes. Se antes cada epíteto se erguia contra a outra igreja, agora cada leitura de Lutero como que diz tanto ou mais de si quanto dele.
O século XX, por seu lado, viu surgir estudos também no campo católico que evidenciam novos olhares sobre Lutero. Progressivamente a investigação foi mostrando a relação do pensamento de Lutero com o occamismo, os elementos teológicos da Reforma e a profunda religiosidade do reformador, ao mesmo tempo que sublinhava a dimensão existencial da sua teologia ou o seu esforço por levar a Igreja a pisar caminhos evangélicos. Entre os católicos que mais estudaram Lutero, cite-se o historiador Joseph Lortz que nos anos 40 conseguia apreciar o reformador pela importância dada a soberania de Deus e à centralidade de Cristo Salvador ou por ter mantido a presença real eucarística, ao mesmo tempo que o criticava por não ter respeitado a integridade da Palavra divina e por ter interpretado a Bíblia ao jeito dos seus interesses pessoais.
Também o movimento ecuménico foi fazendo o seu caminho. Em 1983, precisamente nos 500 no nascimento de Lutero, a Comissão Mista Católico-Romana/Evangélico-Luterana afirmava que «se começa a reconhecê-lo como uma testemunha do Evangelho, como um mestre da fé, como um arauto de renovação espiritual». Acolhendo os estudos protestantes e católicos contemporâneos sobre Lutero, acreditava que abriam caminho para «um acordo em torno da aspiração central da Reforma» e permitiam ver no pensamento de Lutero, contextualizado historicamente, «uma forma legítima da teologia cristã, precisamente no que concerne à sua doutrina sobre a justificação». Seria precisamente sobre este tema central do desencontro católico-luterano que a Federação Luterana Mundial e a Igreja Católica subscreveriam em 1999 uma declaração conjunta, que estabelece um significativo consenso, mesmo que reconheça também a necessidade de clarificações ulteriores.
O centenário do nascimento de Lutero criaria também a ocasião para que uma palavra pontifícia. Sublinhando a importância de que o discurso sobre Lutero contribua para a unidade dos cristãos e incentivando a investigação sobre ele e a sua multíplice herança, João Paulo II reconhecia que os estudos permitiam já delinear «a profunda religiosidade de Lutero que, com paixão ardente era impelido pela questão da salvação eterna». Mais do que julgar a história, impunha-se «compreender melhor os acontecimentos e ser portadores de verdade». Também Bento XVI se pronunciou sobre Lutero e sobre os desafios do seu pensamento, quando em 2011 visitou o convento Erfurt onde ele viveu e estudou. Teve oportunidade evidenciar a dimensão existencial e concreta da sua teologia e a sua espiritualidade cristocêntrica.
A recuperação deste registo pode iluminar a comemoração da Reforma de Lutero que se inicia. Foi preparada pelo documento Do conflito à comunhão, publicado em 2013 pela Comissão Luterana/Católico-Romana, que situa a comemoração num contexto global, em razão das várias confissões estarem dispersas por todo o mundo e hoje cada vez mais em zonas onde se repercutem e compreendem menos os conflitos do passado, assim como num contexto secular, em razão das pessoas terem abandonado os vínculos eclesiais ou esquecido mesmo as suas tradições. Procura ainda colher os dados do caminho já andado, tanto as novas perspetivas sobre Lutero e a Reforma, como a evocação histórica dos acontecimentos do século XVI ou os temas centrais da teologia de Lutero, a partir dos diálogos ecuménicos luteranos/católico-romanos.
Também dos quadrantes confessionais têm surgidos desafios para as comemorações. No âmbito católico, veio a lume a reflexão autorizada de Walter Kasper, que durante anos presidiu ao Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos. Num opúsculo recente sobre Martinho Lutero lido em chave ecuménica 500 anos depois, reconhece que ele não é um ecuménico no sentido contemporâneo, mas procura delinear um sentido para a comemorações, convidando a prosseguir a receção do reformador, também no seio das igrejas evangélicas. Depois apontar alguns aspetos passíveis de receção, refere que o contributo principal de Lutero para os esforços ecuménicos está «na sua intuição original acerca do evangelho da graça e da misericórdia de Deus, e no seu apelo à conversão», um belo ponto de partida para que todos os cristãos se possam unir em comemoração, com gestos de misericórdia e proximidade recíprocas.
Foi precisamente a linguagem dos gestos aquela que Francisco quis usar deslocando-se a Lund para a abertura do jubileu da reforma. Os bispos luterano e católico romano que o acolhem na Suécia já expressaram o sentido do acontecimento. Em artigo conjunto publicado no diário sueco de inspiração cristã Dagen, Antje Jackelén e Anders Arborelius referem que se está diante de um acontecimento histórico: «Pela primeira vez em absoluto, os líderes da Igreja Católica e da Federação Luterana Mundial olharão em conjunto para a Reforma». Acrescentam que «podemos e devemos dar testemunho ao mundo sobre a misericórdia de Deus» e que «faremos isso com palavras e ações». Mesmo que não saibamos o que será dito em Lund (escrevemos a dois dias daquela data), não há dúvida que os gestos já começaram a falar.

Adélio Fernando Abreu
Voz Portucalense (2 de novembro de 2016) 8