28/04/2022

A guerra entre a Rússia e a Ucrânia: As Igrejas ortodoxas perante o conflito

Entrevista de Pierluigi Mele ao P. Lorenzo Prezzi, diretor do portal de informação religiosa Settimana News

A guerra na Ucrânia constitui uma clivagem dramática para o cristianismo oriental. Que cenários são possíveis? Falamos disto nesta entrevista com o P. Lorenzo Prezzi, jornalista e teólogo, especialista no cristianismo ortodoxo. O P. Prezzi é o diretor do portal de informação religiosa settimananews.it

P. Lorenzo, o senhor é um especialista no mundo ortodoxo. Um mundo ainda pouco conhecido. A guerra na Ucrânia colocou-o em evidência. Em particular pelas declarações enfáticas do Patriarca Kirill de apoio total à guerra de Putin. Antes de analisarmos o conteúdo da posição do religioso moscovita, vamos concentrar-nos um pouco sobre ele. Qual é a história de Kirill?

Vladimir Michajlovič Gundjaev, o futuro Patriarca Kirill, nasceu em São Petersburgo em 1946 e é uma personalidade de relevo que conheceu muitas fases da sua vida. É filho e neto de padres que viveram o Gulag e a perseguição. Como salientou Antonio Sanfrancesco, o pai de Kirill passou 47 detenções, sete condenações ao exílio, num total de 30 anos de prisão. O avô passou três anos na famosa prisão de Kolyma, na Sibéria. Kirill conhece bem a duríssima época das perseguições comunistas na União Soviética. Não surpreende que tenha entrado no seminário em 1965. O que é surpreendente, no entanto, é a sua carreira muito rápida. Ordenou-se padre em 1969, graduou-se em 1970 e tornou-se o primeiro secretário do metropolita Nikodim no mesmo ano. De 1974 a 1984 foi reitor do seminário e da academia teológica. Em 1976 já era bispo. O verdadeiro ponto de viragem aconteceu em 1971, quando se tornou o representante oficial do Patriarcado de Moscovo no Conselho Ecuménico das Igrejas em Genebra. Conheceu as outras Igrejas cristãs e o Ocidente. Conta-se a sua paixão pela prática desportiva nas pistas de neve da Suíça, admiração por relógios caros e carros potentes. A propósito de um relógio de valor há um relato com alguns anos de uma fotografia sua em paramentos litúrgicos em que é visível um relógio de marca, que entretanto desapareceu, depois de uma campanha de imprensa contra ele. Tornou-se um interlocutor apreciado e criou uma reputação de liberal e ecuménico. Deu forma à intuição de Nikodim de usar a abertura ecuménica para defender a Ortodoxia no seu país. O poder soviético começou a apreciar os contactos ocidentais da Igreja russa e a imagem positiva que elas garantiam. Em 1989, tornou-se presidente do departamento para as relações externas do patriarcado. Este papel central garantiu-lhe uma presença estável no sínodo, contactos com o Ocidente e conhecimento direto dos outros bispos. Assim, à morte do Patriarca Alexis, foi eleito como seu sucessor (2009). Aqui abre-se uma terceira fase. O colapso da União Soviética e o impulso de autonomia das Igrejas ortodoxas, anteriormente subservientes a Moscovo, levaram-no a reforçar o papel central das instituições patriarcais e a elaborar a doutrina do «espaço russo» (Russkij mir). O vínculo litúrgico, a longa tradição, a formação comum de bispos e teólogos sugerem o reavivar dos vínculos pastorais, mesmo após o reaparecimento dos estados e nacionalidades. Mas é a chegada política de Putin que realiza o seu desígnio. O instinto deste último para devolver consistência e império ao poder moscovita associa-se à opção pastoral de Kirill. Este último fornece a hipótese espiritual e cultural e a linguagem compatível e coaxial com os sonhos do novo czar. Juntos impõem um novo centralismo, extinguem as expectativas democráticas e sufocam lentamente o espaço da sociedade civil. Em contrapartida, Putin deu à Igreja ortodoxa espaço de manobra absolutamente impensável apenas alguns anos antes: a presença nas escolas, o amplo reconhecimento nos meios de comunicação social, o reconhecimento dos diplomas e da teologia nas faculdades estatais, o apoio maciço à construção de igrejas (ao ritmo de 1000 igrejas por ano), a reabertura de centenas de mosteiros, a cobertura "política" às atividades internacionais da Igreja ortodoxa russa e o apoio para impor a sua hegemonia à Ortodoxia mundial. A nova constituição faz referência explícita a Deus e garante que a família é constituída por um homem e uma mulher. Os valores morais tradicionais constituem um escudo entre a espiritualidade da Rússia e a decadência do Ocidente.

Nos últimos dias, o Huffingston post voltou a publicar a notícia, retirada do arquivo Mitrokhin, de que Kirill seria desde os primeiros anos um agente do KGB. Isto explica, porventura, a forte ligação com Putin?

O envolvimento de Kirill com os serviços secretos russos com o nome de Mikhailov está hoje esclarecido como questão de facto, mas é sempre entendido como uma "questão de direito". No regime soviético, dificilmente se poderia conseguir desempenhar funções públicas e chegar a contactos internacionais sem um "serviço" conveniente ao KGB. Mas seria um erro julgar o facto a partir da nossa sensibilidade. Inclinar-se perante a polícia secreta era também o instrumento para salvaguardar um mínimo de liberdade e de espaço para a vida eclesial. Afirmou-o diretamente o ex-metropolita de Kiev, Filaret, que na altura era concorrente direto de Kirill na sucessão de Alexis. Questionado sobre o seu passado como informador, respondeu que essa era a condição de todos os bispos e de todos os que tinham autoridade na Igreja. O domínio da sociedade na ditadura comunista era generalizado e a identidade ortodoxa não permitia a existência de uma Igreja "subterrânea" ou de um "estado de confissão" contra os poderes constituídos. Mesmo na Igreja católica polaca, que era muito mais dura e capaz de se defender, foram numerosos os casos de colaboracionistas. Foram apanhados D. Wielgus, arcebispo nomeado de Varsóvia (que se demitiu imediatamente) e o cardeal Henryk Roman Gulbinowicz. Os serviços deste último prolongaram-se por mais de 20 anos. Voltando a Kirill, é possível que tenha tido conhecimento direto de Putin. A pastoral do exército e dos serviços de segurança fez parte certamente das suas competências. Há algumas semanas, a citação evangélica de Putin sobre o maior amor para com um soldado  dar a vida pelos seus amigos  causou escândalo. As palavras evangélicas ressoaram muito antes na boca de Kirill a respeito do serviço militar.

Vejamos o conteúdo da posição de Ķirill. A posição do Patriarca é uma verdadeira teorização de uma autocracia teocrática. Neste cenário em que medida é que a religião se torna um instrumento de poder político? Ou será que os "dois reinos" estão tão imbricados que formam um único corpo à semelhança que se verifica no Irão?

Em vez de teocracia, na linguagem ortodoxa da tradição, falaria de sinfonia, de acordo entre governo civil e autoridade eclesial. Após muitos séculos, Kirill parecia estar em condições de retomar o modelo de Bizâncio, o acordo entre o imperador e o sínodo. Na teocracia iraniana, a Sharia é o "todo" do poder e a vertente religiosa determina a orientação política. Na Rússia, há mais espaço entre Igreja e Estado, o poder está firmemente nas mãos do presidente da Federação, e a laicidade das instituições, embora obscurecida, é ainda assim afirmada. O sinal de uma certa distância é dado pelo acontecimento "catastrófico" do século XX russo. Para Kirill é o fim dos Romanov e a Revolução de Outubro. Para Putin é a implosão da União Soviética nos anos 90. O projeto político e o projeto eclesiástico integram-se no Russkij mir, na expectativa de recompactar o velho espaço soviético com a tradição ortodoxa russa e o seu messianismo antiocidental. A crise da hipótese política poderá levar à recusa do projeto religioso. O que hoje parece certo é a perda da Ucrânia ortodoxa para o Patriarcado de Moscovo. Não é apenas a perda de um terço da totalidade das paróquias do Patriarcado e de uma preciosa quantidade de vocações monásticas e sacerdotais, mas é sobretudo o distanciamento simbólico do berço histórico da Igreja, a Rússia de Kiev. Se Putin está a perder a guerra, Kirill já perdeu a Ucrânia ortodoxa.

As teses justificativas de Kirill sobre a guerra geraram escândalo no mundo ortodoxo e não só (há afirmações que são aberrações teológicas). Sabemos que houve a reação de 400 sacerdotes ortodoxos que alegam que a Doutrina do "mundo russo", preconizada pelo Patriarca, é uma heresia. Em que sentido?

Kirill justifica teologicamente a agressão contra a Ucrânia em nome da pertença comum à fé ortodoxa, atacada pelo Maligno representado pela imoralidade e pela decadência ocidental. Trata-se de um confronto apocalíptico, do conflito metafísico entre luz e trevas, da necessidade de evitar para a ortodoxa russa a deriva antievangélica das Igrejas do Ocidente. Mas a identificação do Reino de Deus com uma etnia (russa) e as suas atuais instituições políticas constitui  é o que afirmam mais de 500 teólogos ortodoxos  uma infidelidade radical ao Evangelho. A opção de Kirill sufoca a originária dimensão universalista da fé cristã e obriga o povo crente da Ucrânia a uma posição de quietude e demissão no que diz respeito aos deveres de justiça e de dignidade das pessoas. 300 padres ortodoxos russos (de um total de 40.000) expressaram o seu apoio a um distanciamento da guerra. Mais de 400 padres ucranianos, de obediência russa, pediram que Kirill fosse demitido das suas funções.

Os mesmos sacerdotes que assinaram o apelo pediram ao Conselho dos Primazes das Igrejas Orientais Antigas que afastasse Kirill do "trono" patriarcal. Isto é possível? Kirill está isolado no mundo ortodoxo?

É difícil imaginar a demissão forçada de Kirill. No texto dos padres ucranianos, a referência histórica para demitir Kirill é um Concílio dos patriarcas orientais de 1666 que condenou o Patriarca Nikon de Moscovo. Não se vê como é que hoje isto possa acontecer. E, nos estatutos da Igreja russa, o direito de examinar a ação do Patriarca está reservado ao Concílio dos bispos (a assembleia que une todos os bispos). Nenhum bispo russo se pronunciou até agora contra Kirill. Pelo contrário, houve cerca de dez que o defenderam em público. O único que poderia tomar uma decisão sobre o assunto, não num sentido legal mas num sentido substancial, é Putin. É provável que o próximo Concílio de bispos (previsto para o próximo outono) discuta a questão ucraniana, mas nada sugere a expectativa de uma deslegitimação de Kirill.

A guerra, em todo o caso, assinala uma clivagem dramática no mundo do cristianismo oriental (não apenas ortodoxo). Que consequências terá a nível ecuménico?

Sim, a guerra vai determinar um antes e um depois. Tendo em conta a extraordinária riqueza histórica, espiritual e teológica da Igreja ortodoxa e da Igreja russa em particular, é possível esperar um período de profunda reflexão e experimentação pastoral. É provável que o cisma em curso entre a Ortodoxia eslava e a Ortodoxia helénica seja enfrentado de maneira distinta e que a própria Ucrânia possa tornar-se terreno de experimentação positiva no seio das Igrejas ortodoxas e com a Igreja católica de rito oriental. Por agora, pode registar-se uma ferida grave no testemunho do cristianismo no seu conjunto.

Última pergunta: o Papa Francisco não é demasiado otimista em relação a Kirill (os dois estão nos antípodas)?

Francisco navega a uma profundidade que relativiza as graves turbulências à superfície. Em relação à Ucrânia, pôs em ação a oração universal da Igreja, a dimensão da piedade popular (consagração da Ucrânia e da Rússia ao Coração Imaculado de Maria), a atividade diplomática da Santa Sé, competências teológicas, uma dura condenação da guerra, mas sem acusações diretas a pessoas, mesmo que estas se possam intuir. Ele sabe que atualmente é o único ponto de referência credível para o conjunto das Igrejas ortodoxas e que no seu serviço petrino deve assumir o peso de representar o cristianismo no seu conjunto. É uma situação sem precedentes que não se mede pelas relações pessoais ou pelas urgências imediatas da geopolítica, mas pelas correntes profundas da história.

Rai News (22 de abril de 2022).

25/04/2022

Saudação do Papa Francisco ao Patriarca Kirill de Moscovo por ocasião da Páscoa

A Sua Santidade Kirill, Patriarca de Moscovo e de Toda a Rússia

«Ele foi atormentado e ferido, mas cura todas as doenças e todas as enfermidades.
Ele foi levantado na árvore e pregado; mas restabelece-nos pela árvore da vida...
Morre, mas dá vida, e destrói a morte com a morte.
É sepultado, mas levanta-se. Desce ao inferno, mas desperta dele as almas».
(São Gregório, o Teólogo. Discurso 29. Sobre o Filho de Deus).


Vossa Santidade!

Na Sua bondade, o Senhor permitiu-nos mais uma vez celebrar a Páscoa. Nestes dias, ao sentirmos o peso do sofrimento dos membros da nossa família humana, destroçados pela violência, pela guerra e por muitas injustiças, maravilhemo-nos novamente com um coração agradecido por o Senhor ter tomado sobre si todo o mal e toda a dor do nosso mundo. Ele fê-lo para todo o sempre e em todo o universo pelo poder da Sua Cruz, entregando-se filialmente nas mãos do Pai (cf. Lc 23,46).
Obediente à vontade do Pai, na unidade do Espírito, Jesus deu a sua vida para destruir a morte. De facto, a morte de Cristo foi o início de uma nova vida e da libertação dos laços do pecado bem como a ocasião da nossa alegria pascal, ao abrir a todos os homens o caminho desde a sombra das trevas até à luz do reino de Deus.
Caro irmão! Rezemos uns pelos outros para que possamos dar testemunho credível da mensagem evangélica de Cristo ressuscitado e da Igreja como sacramento universal de salvação, para que todos possam entrar no reino de «justiça, paz e alegria no Espírito Santo» (Rom 14,17).
Que o Espírito Santo transforme os nossos corações e nos torne verdadeiros construtores de paz, especialmente para a Ucrânia devastada pela guerra, para que, o mais depressa possível, a grande passagem pascal da morte para uma nova vida em Cristo se torne uma realidade para o povo ucraniano, que anseia por um novo amanhecer que ponha fim às trevas da guerra.
Unidos em oração recíproca, entregamos as nossas Igrejas e todos os nossos irmãos e irmãs à intercessão de Maria, Mãe de Deus, que esteve com o seu Filho no seu sofrimento e na sua morte e partilhou a alegria da sua ressurreição. Desejo de todo o coração a Vossa Santidade uma Páscoa alegre e abençoada!

Cristo Ressuscitou!

Texto da saudação em russo.

Mensagem de Páscoa do Patriarca Bartolomeu de Constantinopla

BARTOLOMEU
PELA MISERICÓRDIA DE DEUS
ARCEBISPO DE CONSTANTINOPLA - NOVA ROMA
E PATRIARCA ECUMÉNICO
A TODO O PLEROMA DA IGREJA
GRAÇA, PAZ E MISERICÓRDIA
DE CRISTO GLORIOSAMENTE RESSUSCITADO

Depois de termos percorrido o caminho das lutas ascéticas da Santa e Grande Quaresma e de termos vivido contritos a veneranda Paixão do Senhor, cheios agora da luz infinita da Sua resplandecente Ressurreição, louvemos e glorifiquemos o Seu nome supraceleste, aclamando «Cristo ressuscitou!», alegria do mundo.
A Ressurreição é o núcleo da fé, da piedade, da cultura e da esperança dos Ortodoxos. A vida da Igreja, na sua manifestação divino-humana, sacramental e litúrgica, espiritual, ética e pastoral e no bom testemunho da graça que vem em Cristo e da esperança da «comum ressurreição», encarna e reflete a derrota esmagadora do poder da morte através da Cruz e da Ressurreição do nosso Salvador e a libertação do homem da «escravidão do inimigo». A Ressurreição é testemunhada pelos Santos e pelos Mártires da fé, pelo dogma, pelo ethos, pela estrutura canónica e pela liturgia da Igreja, pelos templos sagrados, pelos mosteiros e pelos nossos veneráveis santuários, pelo zelo divino do clero sagrado, pela dedicação sem pré-condições do ter e do ser dos monges em Cristo, pela convicção ortodoxa dos fiéis e pelo impulso escatológico de todo o modo eclesiástico de viver.
A festa da Páscoa não é para os ortodoxos uma evasão temporária da realidade terrena e das suas contradições, mas é uma manifestação da fé inabalável de que o Redentor da estirpe de Adão, que esmagou a morte com a morte, é o Senhor da história, o Deus de amor que está sempre «connosco» e «para nós». A Páscoa é a certeza vivida de que Cristo é a Liberdade que nos torna livres, o fundamento, a espinha dorsal e o horizonte da nossa vida. «Sem mim nada podeis fazer» (Jo 15,5). Nenhuma circunstância, «aflição ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada» (Rom 8,35) pode separar os fiéis do amor de Cristo. Esta firme convicção inspira e reforça a nossa criatividade e a vontade de sermos «colaboradores de Deus» (1 Cor 3,9) no mundo. Temos a garantia de que, perante obstáculos intransponíveis e becos sem saída, onde o homem não consegue vislumbrar uma solução, há uma esperança e uma perspetiva. «Tudo posso naquele que me fortalece, Cristo» (Fil 4,13). Em Cristo ressuscitado sabemos que o mal, em todos os seus aspetos, não tem a última palavra sobre o caminho da humanidade.
Cheios de gratidão e de alegria pela honra e pelo grande valor que foi dado ao homem pelo Senhor da glória, entristecemo-nos com a violência multifacetada, a injustiça social e a violação dos direitos humanos no nosso tempo. «O luminoso anúncio do ressurreição» e o pregão «Cristo ressuscitou» ecoam hoje com o fragor das armas, com o grito de angústia das vítimas inocentes da violência bélica e dos refugiados, entre os quais se encontra um grande número de crianças inocentes. um grande número de crianças inocentes. Constatámos com os nossos próprios olhos os problemas durante a nossa recente visita à Polónia, onde se refugiou a maioria dos refugiados da Ucrânia. Partilhámos a dor com o fiel e corajoso povo ucraniano, que carrega uma cruz pesada. Rezamos e lutamos pela paz e pela justiça e por aqueles que dela carecem. É inconcebível para nós, cristãos, permanecer em silêncio face à degradação da dignidade humana. Juntamente com as vítimas dos conflitos armados, o «grande derrotado» das guerras é a humanidade, que, na sua longa história, não conseguiu abolir a guerra. A guerra não só não resolve os problemas, como cria problemas novos e mais complexos. Semeia divisão e ódio, alarga o fosso entre os povos. Acreditamos firmemente que a humanidade pode viver sem guerras e violência.
A Igreja de Cristo, pela sua natureza, atua como agente de paz. Não só reza pela «paz que vem do alto» e pela «paz do mundo inteiro», como também coloca em evidência a importância do esforço humano para a sua consolidação. O cristão é, antes de mais, «um agente de paz». Cristo engrandece os pacificadores, cuja luta é uma presença tangível de Deus no mundo e representa a paz "que ultrapassa todo o entendimento" (Fil 4,7), na "nova criação", no Reino bendito do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Espírito Santo. A nossa Igreja, como salienta oportunamente o texto do Patriarcado Ecuménico «Pela Vida do Mundo. Para um ethos social da Igreja Ortodoxa», «honra os mártires que ofereceram a sua vida pela paz, como testemunhas da força do amor, da beleza da criação na sua primeira e última forma e do ideal de uma conduta humana estabelecida por Cristo durante o seu ministério terrestre» (§ 44).
A Páscoa é uma festa de liberdade, de alegria e de paz. Celebrando com uma mente piedosa a Ressurreição de Cristo e vivendo nela também a nossa própria comum ressurreição, adorando com fé o grande mistério da Economia Divina e participando na «festa comum de todos», dirigimos da sempre crucificada e ressuscitada cadeira sagrada da Igreja de Constantinopla a todos vós, veneráveis irmãos e filhos amados, uma afetuosa saudação pascal, invocando sobre vós a graça e a misericórdia d'Aquele que matou o Hades e nos deu a vida eterna, Cristo, Deus de todos.

Fanar, Santa Páscoa de 2022
O Patriarca de Constantinopla
fervoroso intercessor de Cristo Ressuscitado
para todos vós.

Para ler na Igreja durante a Divina Liturgia da Festa da Santa Páscoa, depois do Santo Evangelho Evangelho.

Mensagem traduzida a partir da versão italiana.

Mensagem de Páscoa do Patriarca Kirill de Moscovo

Mensagem pascal de Sua Santidade Kirill, Patriarca de Moscovo e de Toda a Rússia

aos membros do episcopado, ao clero, aos monges e às monjas e a todos os fiéis
filhos e filhas da Igreja ortodoxa russa.

Eminências e Excelências Reverendíssimas, reverendos sacerdotes e diáconos,
veneráveis monges e monjas, caros irmãos e irmãs,

CRISTO RESSUSCITOU!

Ao dirigir-me a vós com esta saudação vivificante, congratulo-me cordialmente com todos vós pela grande e salvífica festa da Páscoa. Neste dia anunciado e santo, estamos cheios dessa alegria espiritual e imensa gratidão a Deus, sentimos tão claramente o poder e a profundidade do amor do Criador pelo homem, que por vezes é difícil encontrar outras palavras para expressar os nossos sentimentos, a não ser aquelas com as quais as mulheres "mirróforas" se apressaram a anunciar aos apóstolos o acontecimento maravilhoso do encontro com o Senhor.
Só podemos imaginar como foi difícil para os discípulos do Salvador acreditarem na realidade da ressurreição. Afinal, tinham visto há pouco tempo com os seus os seus próprios olhos a paixão e crucifixão do seu amado Mestre. Ainda estavam frescas as recordações de como o Seu Corpo morto e sem vida foi depositado no túmulo e como a gruta fria foi fechada com uma pedra pesada. E é então, contudo, que a dor é substituída pela afirmação da fé e do triunfo da vida, e as lágrimas de tristeza se transformam em lágrimas de alegria.
A experiência vivida de comunicação real com Cristo ressuscitado e a alegria sempre nova da Páscoa inspiraram e encorajaram os apóstolos, que foram até aos confins da terra a pregar o perdão dos pecados e a salvação que recebemos por meio do Senhor Jesus, ressuscitado do sepulcro. Sem medo das adversidades e das perseguições cruéis, sofrendo dificuldades e desventuras, os apóstolos testemunharam corajosa e incessantemente Cristo, o Vencedor da morte.
A Igreja já vive há dois milénios este anúncio da Ressurreição, procurando estendê-lo a todo aquele que vem ao mundo (Jo 1,9). À luz da Páscoa tudo resulta diferente: desaparecem o medo e o sentido de desespero, decorrentes da dor, da tristeza e das aflições da vida. Mesmo as circunstâncias difíceis deste tempo conturbado perdem a sua dureza ameaçadora na ótica da eternidade que nos foi dada.
Para dar testemunho do Salvador ressuscitado, não é de todo necessário deslocar-se ou ir para um lugar distante, como fizeram os apóstolos que difundiram o anúncio pascal por todo o mundo. Há muitas pessoas à nossa volta que precisam de um exemplo vivo da fé cristã que age por meio da caridade (Gl 5,6). Deus não exige de nós esforços insuportáveis. Ele apenas nos pede para mostrarmos amor uns para com os outros, recordando-nos que é assim que mostramos o nosso amor por Ele. Um sorriso simpático, a atenção e sensibilidade para com os que nos rodeiam, algumas palavras de consolo e apoio podem ser por vezes as coisas mais importantes que podemos fazer por amor a Cristo ressuscitado.
Hoje, quando o mundo é dilacerado por conflitos e contradições, enquanto o ódio, o medo e a inimizade prevalecem no coração de muitas pessoas, é particularmente importante não esquecer a própria vocação cristã e demonstrar um amor autêntico pelo próximo, que cura as feridas infligidas pelo mal e pela mentira. Não podemos ceder à tentação do inimigo do género humano, que procura destruir a  unidade bendita entre os cristãos ortodoxos. Rezo fervorosamente ao Senhor Jesus, o Vencedor da morte, e peço-vos também a vós que lhe eleveis orações intensas, para que cada obstáculo seja vencido, de tal modo que possa triunfar uma paz duradoura, e as feridas da divisão sejam curadas pela graça divina.
Ao desejar-vos a todos uma boa Páscoa, invoco sobre vós a bênção do Cristo Ressuscitado e desejo-vos, meus caros, a sempre nova e luminosa alegria pascal que nos fortalece na fé, na esperança e na caridade. Que pela misericórdia de Deus esta luz nunca se extinga nos nossos corações e que ela resplandeça sempre no mundo (Mt 5,14)! E que também nós, santificados incessantemente pela Palavra de Deus, pela leitura do Evangelho e pela graça divina que nos foi dada através da participação nos sacramentos da Igreja, possamos crescer constantemente no conhecimento do Senhor e sentir-nos fortalecidos no cumprimento dos Seus mandamentos, para que os homens, vendo a luz das nossas boas obras, glorifiquem o nosso Pai celeste (Mt 5,16) e testemunhem connosco que

CRISTO RESSUSCTOU VERDADEIRAMENTE!

+KIRILL,
Patriarca de Moscovo e de toda a Rus'
Páscoa do Senhor de 2022

Mensagem traduzida a partir da versão italiana.

22/04/2022

A guerra em curso divide (para sempre?) a Ortodoxia

Um abalo para a liderança do Patriarcado de Moscovo liderado por Kirill, que defende a malfadada decisão de Vladimir Putin de invadir a Ucrânia; um caso de consciência para o episcopado, o clero e os fiéis russos, no país e no estrangeiro; a possível reunificação das Igrejas Ortodoxas que têm o seu centro em Kiev e que há três anos têm dado azo polemicamente à contraposição entre a Igreja Ortodoxa Autocéfala Ucraniana (IOAU), ligada ao Patriarcado de Constantinopla, com a qual o Santo Sínodo de Moscovo rompeu a comunhão eucarística, considerando-a cismática, e a Igreja Ortodoxa Ucraniana (IOU), ligada ao Patriarcado de Moscovo e dirigida por Onufriy; a fratura na Ortodoxia, com o Patriarcado de Bucareste a apelidar o russo de «cínico». Estes são os «efeitos colaterais» – imprevistos? – da operação militar especial russa contra a República irmã.

O juízo oposto de Kirill e Onufriy

A 24 de Fevereiro, Kirill anunciou: «É com profunda dor no meu coração que sinto o sofrimento do povo, causado pelos acontecimentos em curso. Como Patriarca de uma Igreja cujo rebanho se encontra na Rússia, na Ucrânia e noutros países, compadeço-me de todas as pessoas atingidas pela desgraça. Exorto as partes em conflito a fazerem todo o possível para evitarem vítimas entre civis».
Por seu lado, Epifanij, primaz da IOAU, ficou totalmente do lado de Kiev e contra o Kremlin. E o primaz da IOU, Onufriy, disse: «Defendendo a soberania e integridade da Ucrânia, apelamos ao presidente da Rússia e pedimos-lhe que cesse imediatamente a guerra fratricida. Os povos ucraniano e russo surgiram das fontes batismais do Dniepr, e a guerra entre estes dois povos é uma repetição do pecado de Caim, que matou o seu irmão por ciúme. Uma tal guerra não tem justificação, nem perante Deus nem perante os homens».
O Santo Sínodo de IOU faz seu o apelo de Onufriy; mas alguns bispos foram mais longe: ignoraram o nome de Kirill durante a «divina liturgia» (missa), a partir do domingo 6 de março. Para a Ortodoxia, quando o bispo celebra, tem necessariamente de recordar o primaz da Igreja com que está em comunhão. Não o fazer é um gesto cismático. No entanto, os metropolitas Eulógio de Sumy, Teodoro de Mukachevo, Filaret de Lviv e mais cerca de uma dúzia “esqueceram” Kirill, explicando – disseram – que não podiam tolerar o seu silêncio sobre a «invasão» em curso.
Dezenas de párocos também o fizeram; mas depois lançaram uma proposta ousada: Onufriy deveria convocar um Concílio local – composto por todos os bispos e por representantes do clero e dos fiéis – para proclamar a autocefalia da IOU. Nova Igreja ligada a Constantinopla ou paralela ao IOAU? Em todo o caso, sem a Ucrânia, o Patriarcado russo perderia um terço dos seus fiéis.

O início da hemorragia da Igreja russa

Perante a tragédia ucraniana, mais cedo ou mais tarde Kirill terá de convocar o Concílio episcopal, ou seja, todos os bispos do Patriarcado. Será um momento crucial: se houver um consenso quase unânime a seu favor... perigo evitado. Se, contudo, a ala crítica for considerável, existe o risco de uma crise a envolver Kirill (e também o seu “ministro dos negócios estrangeiros”, o metropolita Hilarion de Volokolamsk). De facto, até fevereiro, o episcopado russo estava de acordo com a profunda irritação de Putin face à persistência de hostilidades, e mesmo violências, queridas ou toleradas pelo governo ucraniano, por nacionalistas extremistas contra os russos e os russófonos no Donbass e as repúblicas separatistas de Donesk e Lugansk; violências – isto é verdade – que são subestimadas no Ocidente. Mas alguns bispos porventura perguntam: poderão tais violências justificar uma guerra total contra a Ucrânia? Não bastaria enviar o exército russo em defesa destas zonas? Será moralmente aceitável bombardear Kiev, outras cidades e os seus hospitais?
Kirill poderá responder: a Rússia profunda apoia Putin, visto como o defensor dos direitos do nosso país e firme opositor da expansão da NATO a Leste. Mas – objeção – e se a guerra, devido às sanções internacionais, também tornar a vida quotidiana do nosso povo mais precária? Nessa altura, o confronto no Concílio episcopal tornar-se-á dramático, até porque nele pesarão as vozes críticas da Ortodoxia russa, no país e na Europa, contra a guerra e contra o patriarca.
Mais de 270 padres e diáconos russos escreveram num apelo lançado no início de março: «Lamentamos a provação a que os nossos irmãos e irmãs na Ucrânia têm sido imerecidamente sujeitos», e apelidaram a guerra em curso de «fratricida». Depois alguém agitará a Assembleia episcopal lendo a carta (número de protocolo: 2022. 010) que o metropolita Jean de Dubna, arcebispo das Igrejas Ortodoxas de tradição russa na Europa Ocidental, escreveu de Paris a Kirill a 9 de março: «Em nome de todos os nossos fiéis apelo a Vossa Santidade para que levante a sua voz como Primaz da Igreja Ortodoxa Russa contra esta guerra monstruosa e insensata [contra a Ucrânia] e interceda junto das autoridades da Federação Russa para que cesse o mais depressa possível este conflito mortal, que até há pouco tempo parecia impossível entre duas nações e dois povos unidos por séculos de História e pela sua fé comum em Cristo». Depois Jean refutou uma tese de Kirill, que indignou muitas pessoas no Ocidente. Três dias antes, de facto, o patriarca tinha criticado severamente os gay-pride, que, dizia ele, procuram, de facto, tornar lícitos comportamentos que são contra a vontade de Deus e destroem a sociedade: «Vossa Santidade, na homilia do Domingo do Perdão [6 de março], tinha insinuado que justificava esta guerra de agressão como um “combate metafísico”, em nome do “direito de estar do lado da luz, do lado da verdade de Deus, daquilo que a palavra de Cristo nos revela”. Com todo o respeito, digo-lhe que não posso subscrever esta leitura do Evangelho».

Bucareste contra Kirill. Telefonema do papa

Vários hierarcas ortodoxos – Bartolomeu à frente – intervieram, apelando ao fim imediato da «operação» russa. Por seu lado, o porta-voz do patriarcado da Roménia declarou: «O verdadeiro cristão distinguirá entre um Primaz autêntico e digno da Igreja de Cristo e um Primaz moral e cristãmente desonrado, devido à sua cumplicidade cínica com as coisas mais odiosas que o homem sem Deus é capaz de cometer: a guerra de conquista, o terror, a tortura e a morte de pessoas em massa». E Innokentzy, metropolita de Vilnius e da Lituânia, que está ligado a Moscovo: «Condenamos firmemente a guerra da Rússia contra a Ucrânia e rezamos a Deus pelo seu rápido fim... O Patriarca Kirill e eu temos opiniões políticas e perceções diferentes dos acontecimentos em curso. As suas declarações políticas sobre a guerra expressam a sua opinião pessoal. Nós, na Lituânia, não concordamos com ela».
O secretário ad ínterim do Conselho Ecuménico das Igrejas, o romeno Ioan Sauca, também implorou a Kirill que «cumpra um papel de mediador para pôr fim à guerra». Em segundo plano, uma pergunta: a Igreja Russa poderá participar na Assembleia Geral da CEI em Karlsruhe, na Alemanha, em setembro? O papa: com um gesto invulgar, a 25 de fevereiro deslocou-se à embaixada russa junto da Santa Sé para expressar a sua oposição à guerra. E o núncio em Moscovo, Giovanni D'Aniello, a 3 de março encontrou-se com Kirill que – precisaria depois o comunicado – recordou com agrado o seu encontro com Francisco, em Cuba, em 2016; mas nenhuma referência explícita à Ucrânia. Posteriormente, no domingo 6, Bergoglio disse: «Na Ucrânia correm rios de sangue e de lágrimas... A guerra é uma loucura». E no dia 13: «Em nome de Deus, ponde fim a este massacre! Procure-se verdadeiramente e de forma decisiva a negociação». Uma mediação do Vaticano? Embora o Papa a tal esteja predisposto, está-lo-á Putin, após ter consultado Kirill? No dia 16, Francisco e o patriarca realizaram uma videoconferência. O primeiro reiterou que «não há guerra justa» mas, segundo o comunicado de Moscovo, os dois «discutiram formas de ultrapassar as consequências da crise em curso».

Luigi Sandri
Confronti (março 2022)

18/04/2022

Mensagem "Urbi et Orbe" do Papa Francisco por ocasião da Páscoa

Caros irmãos e irmãs, feliz Páscoa!

Jesus, o Crucificado, ressuscitou! Veio ter com aqueles que choram por Ele, fechados em casa, cheios de medo e angústia. Veio a eles e disse: «A paz esteja convosco!» (Jo 20, 19). Mostra as chagas nas mãos e nos pés, a ferida no lado: não é um fantasma, é mesmo Ele, o mesmo Jesus que morreu na cruz e esteve no sepulcro. Diante dos olhos incrédulos dos discípulos, repete: «A paz esteja convosco!» (20, 21).
Também os nossos olhos estão incrédulos, nesta Páscoa de guerra. Demasiado sangue, vimos; demasiada violência. Também os nossos corações se encheram de medo e angústia, enquanto muitos dos nossos irmãos e irmãs tiveram de se fechar nos subterrâneos para se defender das bombas. Sentimos dificuldade em acreditar que Jesus tenha verdadeiramente ressuscitado, que tenha verdadeiramente vencido a morte. Terá porventura sido uma ilusão? Um fruto da nossa imaginação?
Não; não é uma ilusão! Hoje, mais do que nunca, ressoa o anúncio pascal tão caro ao Oriente cristão: «Cristo ressuscitou! Verdadeiramente ressuscitou!» Hoje mais do que nunca precisamos d’Ele, no termo duma Quaresma que parece não querer acabar. Temos atrás de nós dois anos de pandemia, que deixaram marcas pesadas. Era o momento de sairmos do túnel juntos, de mãos dadas, juntando as forças e os recursos... Em vez disso, estamos demostrando que ainda não existe em nós o Espírito de Jesus, mas existe ainda em nós o espírito de Caim, que vê Abel não como um irmão, mas como um rival, e pensa como há de eliminá-lo. Temos necessidade do Crucificado ressuscitado para acreditar na vitória do amor, para esperar na reconciliação. Hoje mais do que nunca precisamos d’Ele, precisamos que venha colocar-Se no meio de nós e nos diga mais uma vez: «A paz esteja convosco!».
Só Ele o pode fazer. Só Ele tem hoje o direito de anunciar-nos a paz. Só Jesus, porque traz as chagas, as nossas chagas. Aquelas chagas d’Ele são nossas duas vezes: são nossas, porque Lh’as provocamos nós com os nossos pecados, a nossa dureza de coração, o ódio fratricida; e são nossas, porque Ele as traz por nós, não as cancelou do seu Corpo glorioso, quis conservá-las, trazê-las consigo para sempre. São um timbre indelével do seu amor por nós, uma perene intercessão ao Pai celeste para que as veja e tenha misericórdia de nós e do mundo inteiro. As chagas no Corpo de Jesus ressuscitado são o sinal da luta que Ele travou e venceu por nós, com as armas do amor, para podermos ter paz, estar em paz, viver em paz.
Contemplando aquelas chagas gloriosas, os nossos olhos incrédulos escancaram-se, os nossos corações endurecidos abrem-se e deixam entrar o anúncio pascal: «A paz esteja convosco!»
Irmãos e irmãs, deixemos entrar a paz de Cristo nas nossas vidas, nas nossas casas, nos nossos países!
Haja paz para a martirizada Ucrânia, tão duramente provada pela violência e a destruição da guerra cruel e insensata para a qual foi arrastada. Sobre esta noite terrível de sofrimento e morte, surja depressa uma nova aurora de esperança. Escolha-se a paz! Deixe-se de exibir os músculos, enquanto as pessoas sofrem. Por favor, por favor: não nos habituemos à guerra, empenhemo-nos todos a pedir a paz, em alta voz, das varandas e pelas ruas! Paz! Quem tem a responsabilidade das nações, ouça o clamor do povo pela paz. Lembre-se daquela inquietadora pergunta feita pelos cientistas, há quase setenta anos: «Poremos fim ao género humano, ou a humanidade saberá renunciar à guerra?» (Manifesto Russell-Einstein, 09/VII/1955).
Trago no coração todas e cada uma das numerosas vítimas ucranianas, os milhões de refugiados e deslocados internos, as famílias divididas, os idosos abandonados, as vidas destroçadas e as cidades arrasadas. Não me sai da mente o olhar das crianças que ficaram órfãs e fogem da guerra. Vendo-as, não podemos deixar de nos dar conta do seu grito de sofrimento, juntamente com o de tantas outras crianças que sofrem em todo o mundo: as que morrem de fome ou por falta de cuidados médicos, as que são vítimas de abusos e violências e aquelas a quem foi negado o direito de nascer.
No meio da angústia da guerra, não faltam também sinais encorajadores, como as portas abertas de tantas famílias e comunidades que acolhem migrantes e refugiados em toda a Europa. Que estes numerosos atos de caridade se tornem uma bênção para as nossas sociedades, por vezes degradadas por tanto egoísmo e individualismo, e contribuam para torná-las acolhedoras com todos.
Que o conflito na Europa nos torne mais solícitos também perante outras situações de tensão, sofrimento e angústia, que tocam demasiadas regiões do mundo e que não podemos nem queremos esquecer.
Haja paz no Médio Oriente, dilacerado por anos de divisões e conflitos. Neste dia glorioso, peçamos paz para Jerusalém e paz para aqueles que a amam (cf. Sal 121/122): cristãos, judeus e muçulmanos. Possam israelitas, palestinenses e todos os habitantes da Cidade Santa, juntamente com os peregrinos, experimentar a beleza da paz, viver em fraternidade e gozar de livre acesso aos Lugares Santos no mútuo respeito pelos direitos de cada um.
Haja paz e reconciliação para os povos do Líbano, da Síria e do Iraque, e, de modo particular, para todas as comunidades cristãs que vivem no Médio Oriente.
Haja paz também para a Líbia, a fim de encontrar estabilidade depois das tensões destes anos, e para o Iémen, que sofre com um conflito esquecido por todos mas com vítimas contínuas: a trégua assinada nos últimos dias possa devolver esperança à população.
Ao Senhor ressuscitado, pedimos o dom da reconciliação para Myanmar, onde perdura um cenário dramático de ódio e violência, e para o Afeganistão, onde não diminuem as perigosas tensões sociais e onde uma dramática crise humanitária atormenta a população.
Haja paz para todo o continente africano, a fim de que cessem a exploração de que é vítima e a hemorragia causada pelos ataques terroristas – particularmente na região do Sahel – e encontre apoio concreto na fraternidade dos povos. Que a Etiópia, atribulada por uma grave crise humanitária, reencontre o caminho do diálogo e da reconciliação e cessem as violências na República Democrática do Congo. Não falte a oração e a solidariedade pelas populações do leste da África do Sul, atingidas por enchentes devastadoras.
Cristo ressuscitado acompanhe e assista as populações da América Latina, que, em alguns casos, viram piorar as suas condições sociais nestes tempos difíceis de pandemia, agravadas também por casos de criminalidade, violência, corrupção e tráfico de drogas.
Peçamos ao Senhor ressuscitado que acompanhe o caminho de reconciliação que a Igreja Católica no Canadá está percorrendo com os povos autóctones. Que o Espírito de Cristo ressuscitado cure as feridas do passado e disponha os corações na busca da verdade e da fraternidade.
Queridos irmãos e irmãs, cada guerra traz consigo consequências que envolvem toda a humanidade: do luto ao drama dos refugiados, até à crise económica e alimentar de que já se veem os primeiros sintomas. Perante os sinais perdurantes da guerra, bem como diante das muitas e dolorosas derrotas da vida, Cristo, vencedor do pecado, do medo e da morte, exorta-nos a não nos rendermos ao mal e à violência. Irmãos e irmãs, deixemo-nos vencer pela paz de Cristo! A paz é possível, a paz é um dever, a paz é responsabilidade primária de todos!

Balcão central da Basílica Vaticana
Domingo, 17 de abril de 2022


Texto da mensagem na página web da Santa Sé no original italiano e na tradução portuguesa.

13/04/2022

O grande sonho de Kirill: um Carlos Magno do Oriente

Entrevista de Cesare Martinetti a Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose

A segunda guerra ucraniana, consubstancial e paralela à guerra no terreno, é uma guerra feroz entre as Igrejas que acreditam no mesmo Deus. O Patriarca Kirill de Moscovo, ao apoiar com paixão a guerra, ofereceu a Vladimir Putin uma cobertura teológica difícil de compreender no Ocidente. Enzo Bianchi, fundador da comunidade de Bose, tem sido protagonista do diálogo entre os católicos e o Oriente desde os anos 70, quando Kirill veio pela primeira vez a Bose.

Alguma vez imaginou que aquele jovem e brilhante padre ortodoxo entraria nos tanques de Putin em guerra contra os cristãos ucranianos?

Fiquei surpreendido. Conheci-o bem. Encontrei-me com ele pela primeira vez no final dos anos 70, quando acompanhou o Metropolita Nicodim. Depois veio novamente aos congressos ecuménicos de Bose: lembro-me dele muito convicto e ativo no diálogo ecuménico, um homem aberto que conhecia bem o Ocidente. Mais tarde encontrei-me com ele em Moscovo, em 2004, quando fui enviado pelo papa Wojtyla numa delegação com o cardeal Kasper para devolver o ícone roubado de Nossa Senhora de Kazan. Houve um acolhimento extraordinário na esplêndida Catedral de Cristo Salvador.

E come explica a sua adesão à guerra?

Surpreendeu-me porque pensava-se que estava determinado em manter vivo o espírito ecuménico, sobretudo depois do encontro em Cuba com Francisco, no qual – temos de dizer – o Papa se humilhou, ao aceitar vê-lo praticamente de fugida numa sala de aeroporto. Mas não esqueçamos que os ortodoxos têm desconfianças do Papado e, enquanto Igrejas, sentem-se irmãs débeis perante a irmã forte, a Igreja católica, muito organizada e presente em todo o mundo.

Mas há algo mais nos sermões de Kirill: ele forneceu uma justificação teológica para a guerra de Putin. Porquê?

Tudo o que debatemos no Ocidente graças à nossa modernidade chega aos ortodoxos russos numa zona de sombra que é a ocidental-americana, ou seja, o grande e histórico inimigo. Durante muito tempo, para eles, o ecumenismo foi um produto do Ocidente, que provinha da pluralidade das confissões, da tolerância, realidades para eles desconhecidas. O que para eles é uma luta metafísica entre o bem e o mal e uma manifestação do Anticristo, para nós é uma aquisição de direitos civis (por exemplo, no que diz respeito aos homossexuais). Por outro lado, nós católicos pensávamos o mesmo há 50 anos, nem mais nem menos. E estou convencido de que uma parte da Igreja católica ainda pensa assim. Só não há coragem para o dizer publicamente.

E como reagiu a Igreja ucraniana à cruzada de Kirill?

Entretanto, é preciso dizer que existem quatro Igrejas cristãs na Ucrânia: uma ortodoxa em comunhão com Moscovo, outras duas ortodoxas, uma em comunhão com Constantinopla e a outra patriarcal autocéfala, e finalmente uma católica uniata, isto é, de rito bizantino. Apenas o Patriarca Onufriy, metropolita da Igreja ucraniana em comunhão com Moscovo, expressou uma posição sensata, convidando os fiéis a defenderem a pátria ucraniana, mas a não odiar o povo russo. Ao invés, as hierarquias das outras Igrejas responderam abençoando armas, convidando os combatentes a esmagar o inimigo e a amaldiçoar o Patriarca Kirill. Estamos no meio de uma guerra de religiões, tudo menos ecumenismo!

Ouvindo estes relatos, parece que estamos a recuar séculos. Como é que isto é possível?

Para compreender isto é necessário recordar um pouco história e é isso que falta no debate sobre Kirill. As Igrejas ortodoxas não são nossas contemporâneas: viveram sob o regime soviético ou sob o império otomano e isto impediu-lhes o acesso à modernidade. Faltou-lhes o que o Iluminismo e a Revolução Francesa representaram para nós. Quando o comunismo caiu, a Rússia foi invadida por missionários polacos e organizações católicas ocidentais que faziam proselitismo. Os ortodoxos reagiram defendendo o seu território "canónico", um conceito desconhecido para nós católicos.

E o que é que aconteceu depois da revolução ucraniana?

Por vezes os padres russos foram atacados, as igrejas foram fechadas, os religiosos perseguidos e, mesmo recentemente, o Parlamento ucraniano aprovou leis de persecutórias no que respeita aos ortodoxos em comunhão com Moscovo. Então esta guerra religiosa foi sendo preparada. Tenho muitos contactos com religiosos russos e ucranianos que me contavam que havia colunas de tanques e tanques com mísseis a entrar na Ucrânia vindos da Polónia.

Mas o que é que Putin fez para merecer uma “sinfonia” tão entusiástica da parte de Kirill?

Putin ao longo dos anos tornou-se o grande protetor da Igreja russa, em todo o mundo. Ele é uma espécie de Carlos Magno do Oriente. Diz que é cristão, nunca falta aos ritos. Apoia e financia a reconstrução de igrejas ortodoxas no Médio Oriente, reconstrói as destruídas pela guerra na Síria; em Jerusalém financiou obras enormes, e no Monte Athos, na Grécia, restaurou o grande mosteiro de Panteleimon, em ruínas desde os anos 20. Tudo isto faz com que a Igreja se incline perante ele. E há bispos ainda mais patrióticos do que Kirill, como o metropolita Tikhon, o pai espiritual de Putin que, segundo se diz, pode vir a ser o próximo patriarca.

Porque é que a religião é tão importante naqueles países?

Porque faz parte da identidade, como na Polónia e na Hungria. O único país em que já nada importa é a Bulgária, porque o comunismo conseguiu fazer um deserto.

Uma religiosidade que sobrevive num mundo onde as coisas se resolvem pela guerra e onde as manifestações de fé são físicas. Vejam-se as filas mesmo na novíssima catedral de Moscovo para o beijo de relíquias. Isto é espiritualidade ou superstição?

É o Oriente, onde a fé não é apenas um fenómeno intelectual. Nós inventámos a fórmula da "fé pensada", não só madura e profunda, mas que fornece razões através do pensamento. No Oriente não têm esta dimensão, para eles a fé tem uma profundidade espiritual que envolve a pessoa toda. Não são capazes da oração mental. Rezam com o corpo, genufletem, fazem o sinal da cruz continuamente, precisam de beijar os ícones e nas igrejas não há bancos, porque é preciso rezar num estado de vigilância física. Os seus santos falam com ursos, com árvores e com a natureza.

Incompreensível para nós?

Sim. A religião sem o uso da razão torna-se facilmente magia ou fanatismo. Dizia-o Bento XVI: o Iluminismo foi um grande dom, porque, ao dar primazia à razão, libertou a religião do fanatismo e da magia.

Qual é o seu motivo de esperança?

Eu sou amigo do metropolita Hilarion, o número dois do Patriarcado, responsável pelas relações com as Igrejas estrangeiras e muito próximo do Patriarca. Ele é um monge espiritual e intelectual de valor, veio a Bose, fizemos viagens ecuménicas juntos, e eu publiquei os seus livros na minha editora. De momento ele está em silêncio, e isto significa que nem toda a Igreja está plenamente de acordo com Kirill. Acredito que, mais cedo ou mais tarde, Hilarion fará ouvir a sua voz, que é certamente uma voz ecuménica e de paz.

La Stampa (3 de abril de 2022).

Outros textos sobre o tema:As recentes tensões entre as Igrejas ortodoxas a propósito da autocefalia da Igreja ucraniana