Este ano de 2017 é particularmente importante, para refletirmos sobre uma das figuras mais importantes da história do Cristianismo, Martinho Lutero, por passarem 500 anos do começo da Reforma. Como escreveu, um dia, o eminente teólogo católico Yves Congar, Reforma é, antes de tudo, Lutero. Foi ele quem abriu, em primeiro lugar, “a sólida crosta do mundo cristão do Ocidente”.
Houve, de facto, outros reformadores: Calvino, Zwinglio, entre outros. Mas nenhum como Lutero possuía, ao mesmo tempo, a cultura, a intuição, e a capacidade política para criar um movimento duma tal envergadura.
Durante mais de três séculos após a sua morte, Lutero, foi visto mais como santo, do que como homem do seu tempo, isto é, de modo mais hagiográfico que histórico. Assim aconteceu com Jonas, Coelius e Melanchton. Em 1566 Mathesius publica a História do venerável em Deus, do santo e caro homem de Deus, o Doutor Martinho Lutero. O pietismo dos séculos XVII e XVIII interessou-se mais pela espiritualidade de Lutero que por sua teologia. Mas actuando desta forma, acaba por canonizá-lo. Para as massas protestantes, Lutero mantém-se, como escreve Lucien Febvre como “um semideus, de rosto rosado, cabelos ondeados, atitude paternal e linguagem benigna”.
Frederico II da Prússia concedia-lhe o mérito de ter estabelecido uma religião submissa ao Estado e Herder e Fichte consideravam-no o campeão do nacionalismo alemão. Por sua vez, Lessing, Hegel, Novalis, e em França Michelet, consideravam a Reforma como a vitória da liberdade de consciência.
A história começa tarde a fazer o seu caminho.
Foi sobretudo a partir da investigação do dominicano Denifle, um austríaco, arquivista no Vaticano, que os trabalhos históricos começaram a sério, já estávamos nos começos do séc. XX. Denifle enquadra Lutero no clima de decadência da Igreja, nos fins da Idade Média, embora trace de Lutero um quadro, pouco próximo da santidade.
O jesuíta Grisar abordou a história de Lutero em termos mais comedidos, mas não lhe concede a categoria dum teólogo digno desse nome. Só em 1917, Kieff na revista católica Hochland, afirmava que Lutero conseguiu êxito porque a sua mensagem possuía um conteúdo moral e religioso convincente.
Mais tarde, deve-se sobretudo ao historiador católico J. Lortz, a partir de 1939, o trabalho e a metodologia de trabalho decisiva para a abordagem de Lutero. O grande autor de A Reforma na Alemanha, reconhece “que não se pode duvidar de que, no claustro, Lutero lutou pela salvação da sua alma com uma austeridade inflexível”. E ainda: “Lutero foi um personagem eminentemente religioso. Os anos decisivos da sua evolução e da sua irrupção na cena histórica são extraordinariamente ricos em vida religiosa, quaisquer que tenham sido os seus erros dogmáticos”.
Também em França, um dos apóstolos do Ecumenismo, Yves Congar, escrevia em 1950, em sua obra Verdadeira em falsa reforma da Igreja sobre a grandeza espiritual de Lutero: Para compreender Lutero a melhor perspectiva é a da história, não a confessional ou a psicológica.
Durante muito tempo explicou-se a Reforma pelos “abusos da Igreja”. Pese embora a verdade deste fundamento bem conhecido, não deixa também de ser verdade que pelos finais do séc. XV e XVI, se estava a produzir na Igreja, em vários sectores, um grande movimento reformador.
Segundo um dos melhores historiadores do Concílio de Trento, Jedin, a vida religiosa na Alemanha na época, conhecia um surto de renovação superior a outros países e, por isso, a necessidade da Reforma, deixava-se sentir, não pela decadência, mas por uma maior exigência dessa mesma vida religiosa.
Neste contexto poderia ser possível alguma reconciliação entre Lutero e os movimentos renovadores do seu tempo, ou mesmo o diálogo com personalidades como Erasmo. Todavia a linguagem extremamente violenta de Lutero contra Erasmo, o Papa e reformadores como Zwiwnglio, os radicais evangélicos como Thomas Muntzer, diatribes contra os judeus, que se acentuaram à medida que o tempo ia passando, tornavam impossível o campo do entendimento.
Contra os camponeses escreve, por exemplo: “estrangulem-se! Ao cão louco que se lança contra ti, há que matá-lo; se não, matar-te-á a ti.” E num panfleto de 1543, Contra os judeus e suas mentiras, Lutero convida à destruição das sinagogas.
Hitler, de resto, recordará este apelo e fará publicar milhões de exemplares destes libelos de Lutero.
Mas mesmo isto há que compreendê-lo na época. A violência verbal e física era então mais frequente do que hoje. Por outro lado, o Papado, que durante muito tempo protegeu os judeus, também caiu no anti-semitismo, com Paulo VI (1555-1559) e Pio V (1566-1572), ambos criadores de ghettos nos Estados Pontifícios.
Filipe Melanchton que tanto ajudou Lutero e o moderou em temas teológicos, confessou dois anos depois da morte do Reformador: “Sofri uma escravidão verdadeiramente odiosa, porque Lutero abandonava-se à sua natureza, onde aparecia uma tendência excessivamente batalhadora com mais frequência do que ter em conta a sua dignidade e a utilidade comum”.
Da hagiografia à história, vai uma grande diferença.
Hoje devido aos trabalhos históricos sérios estamos na altura de conhecer melhor Lutero e o seu tempo.
Arnaldo de Pinho
Voz Portucalense (1 de março de 2017) 8