Os acontecimentos de Fátima e o lugar de Fátima no catolicismo português são assuntos incómodos no contexto do diálogo ecuménico. Na último fascículo de O Novo Despertar (n. 174, Maio de 2017), publicação da Igreja Lusitana (Comunhão Anglicana), saíram dois textos com reflexões de muito interesse que evidenciam tais perplexidades. Referimo-nos a Fátima e a questão ecuménica (pp.18-19), de D. Jorge Pina Cabral, bispo da referida Igreja, e A propósito do centenário das aparições de Fátima (pp. 20-21), de D. Fernando Soares, bispo emérito da mesma Igreja. O primeiro desses textos sobretudo refere as dificuldades que Fátima coloca às demais Igrejas que participam no diálogo ecuménico, assim como aponta caminhos para todas as Igrejas, no que ao lugar de Maria se refere.
Fez-nos lembrar este texto um pequeno artigo que José Eduardo Borges de Pinho, professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica e especialista em ecumenismo, publicou já há anos do jornal Voz Portucalense, sob o título Fátima - pesadelo para o ecumenismo?. Creio que no contexto do centenário dos acontecimentos de Fátima, vale a pena recuperar este texto, como também vale a pena ler e refletir sobre os textos oriundos da Igreja Lusitana que antes referimos. O ecumenismo constrói-se sobre o conhecimento mútuo do que nos aproxima e das dificuldades que subsistem. Sobre Maria e particularmente sobre Fátima há de facto dificuldades e «não existe ainda contexto eclesial ecuménico maduro», como refere D. Jorge Pina Cabral no seu texto.
É possível, contudo, ir dando espaço à questão. Nas últimas Jornadas de Teologia da Universidade Católica no Porto, que versaram sobre Maria, também se refletiu sobre Maria no desafio de uma espiritualidade ecuménica e no Congresso Internacional do Centenário de Fátima, que se realiza de 21 a 24 de junho próximos, José Eduardo Borges de Pinho regressará ao tema com uma comunicação precisamente sobre Fátima e a questão ecuménica, que aguardamos com muita expectativa.
Por agora, damos a conhecer os três textos referidos, ao mesmo tempo que remetemos para a leitura dos documentos do diálogo ecuménico sobre Maria, nomeadamente o texto do Grupo Ecuménico de Dombes Maria no projeto de Deus e a comunhão dos santos de 1997-98 (Gráfica de Coimbra, 1998) e o texto da Comissão Internacional Anglicana-Católica Romana Maria: graça e esperança em Cristo de 2005.
Fátima - pesadelo para o ecumenismo?
Borges de Pinho
1. O título que me foi proposto para esta nota pode parecer excessivo, e assim o senti num primeiro momento. Todavia, logo me vieram à memória os depoimentos que, há não muitos anos, recolhi junto de diversos representantes de Igrejas e Comunidades Eclesiais existentes em Portugal, em ordem a uma comunicação num Congresso Mariológico Internacional. O teor das respostas não deixava qualquer dúvida: Fátima constitui mesmo um dos obstáculos maiores para o ecumenismo no nosso país.
2. Mas porquê é Fátima essa pedra de tropeço? As razões são várias e prendem-se tanto com convicções fundas do protestantismo em geral como com aspetos particulares relativos a Fátima. Enumero algumas delas:
- Antes de mais, a visão protestante sobre o viver crente em Igreja, enraizada num certo entendimento da justificação pela fé, tem dificuldades em admitir uma cooperação positiva de Maria na obra da salvação, vendo aí um ofuscamento ou mesmo um pôr em causa da centralidade de Cristo como único mediador entre Deus e os homens;
- Nessa mesma ordem ideias, há pouca recetividade para uma comunhão dos santos que transcenda as circunstâncias do viver humano no tempo, pelo que só se invoca a Deus e rejeita-se qualquer invocação de Maria (e dos santos);
- Não se aceitam também os pressupostos católicos que estabelecem algum paralelismo tipológico entre Maria e o mistério da Igreja (Maria como tipo e modelo da Igreja);
- Já noutro plano, as expressões de religiosidade popular (promessas, sacrifícios e sua compreensão, etc.) que se associam a Fátima são vistas como desvio ao Evangelho;
- Além disso, por princípio, o protestantismo recusa atribuir qualquer significado a revelações particulares (contrárias, no seu entendimento, à exclusividade da Escritura);
- Finalmente, na ótica protestante, Fátima tem sido utilizada pela Igreja Católica duma forma que consideram inadequada (Fátima como símbolo do papel e do "poder" que a Igreja Católica tem em Portugal).
3. Como católicos creio que faríamos mal em ignorar, pura e simplesmente, estas ou outras observações críticas, como se não houvesse lugar aqui também para alguns questionamentos e purificações.
Desde logo porque, também para nós, o lugar de Maria no acontecimento cristão só é correta e devidamente compreendido e valorizado dentro da centralidade cristológica que estrutura a existência cristã.
Depois, porque o Concílio Vaticano II lembrou, precisamente no contexto do ecumenismo, que há uma "hierarquia das verdades" da fé a ter em conta, e esta estruturação da fé - tanto a nível doutrinal como existencial - nunca deve ser esquecida.
Além disso, não podemos ignorar que, se Fátima tem sido para milhões de pessoas lugar de encontro com Deus, também é verdade que, como realidade multifacetada que é, não esteve (está) imune a ambiguidades e nem sempre tem sido (é) encarada de modo adequado às exigências da maturidade da fé e à perceção do verdadeiro Deus.
Em síntese: também para nós se justifica sempre de novo a pergunta como e em que medida Fátima é e pode ser lugar acolhimento da mensagem evangélica. Por isso mesmo, Fátima tem de ser continuamente acompanhada pela reflexão teológico-pastoral e por uma consciência eclesial atenta e clarividente.
4. Sensíveis a esta saudável autocrítica, creio que podemos e devemos, então, colocar também algumas questões e fazer algumas propostas aos outros cristãos.
Pode-se lembrar, por exemplo, que um certo "esquecimento" de Maria, em que a tradição protestante caiu, não se justifica por razões de Evangelho, mas resulta sobretudo de unilateralismos de polémica confessional. Maria faz parte do Evangelho de Jesus e da história comunitária de fé no seu seguimento, a exemplaridade da fé de Maria é modelo permanente do nosso peregrinar crente.
Por outro lado, deve-se tornar inequivocamente claro (na teoria e na prática) que, também para nós, o papel desempenhado por Maria na obra da salvação não é algo independente de Cristo ou ao seu lado, antes só pode acontecer em subordinação a Ele e de um modo derivado d'Ele (Maria é expressão culminante da salvação pela graça).
Também se deve explicitar melhor porquê e como a existência crente não é uma realidade de pendor "individualista", mas caminho em Igreja, numa solidariedade na fé que envolve autêntica comunhão dos santos.
Igualmente será de perguntar se não se deve partir duma conceção menos "racionalista" da fé, capaz de valorizar de forma mais justa os múltiplos caminhos da fé das pessoas e do seu (insondável aos nossos olhos) encontro com o Mistério de Deus.
Sobretudo, será oportuno recordar que, dentro da referida "hierarquia das verdades", todo este campo da mariologia e da devoção mariana é certamente um lugar privilegiado para irmos experimentando caminhos de maior tolerância mútua, no respeito pela legítima diversidade (desde que uma diversidade não contrária ao Evangelho).
E, enfim, há um dado de facto que nos tem de interpelar a todos: não obstante possíveis (e reais) deformações, Fátima foi (e continuará a ser) para muita gente lugar de descoberta da mensagem do Evangelho.
5. Os caminhos do ecumenismo não são fáceis, e este ponto é particularmente delicado: não apenas por razões doutrinais, mas por todo o conjunto de emoções que, de um lado e de outro, suscita. Por isso mesmo, sobretudo em questões como esta, não basta o diálogo teológico-doutrinal (ainda que, como mostra o último documento do Grupo de Dombes, há já uma base sólida para um diálogo ecuménico sereno sobre Maria). Antes, é preciso todo um caminho global de aproximação entre pessoas e comunidades na valorização do que já têm comum e do que é verdadeiramente essencial na vivência e no testemunho cristãos.
Nessa via, que não é certamente a do curto prazo, mas de persistente busca de fidelidade ao Evangelho, Maria pode deixar de ser vista e sentida como obstáculo, para se tornar estímulo e apoio à aproximação dos cristãos. É minha esperança que a redescoberta em comum de Maria - à luz do testemunho bíblico e sempre no respeito pela legítima diversidade de tradições, experiências de fé, piedades - venha a ser um impulso significativo, também com o contributo da rica tradição do Oriente, no caminho para a unidade dos cristãos.
+ Jorge Pina Cabral
A propósito do centenário das aparições de Fátima (pp. 20-21)
+ Fernando Soares