16/12/2020

Vademécum ecuménico para os bispos

O bispo e a unidade dos cristãos: vademécum ecuménico. Com este título o Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos apresentou a 4 de dezembro um instrumento para orientar a ação ecuménica dos bispos das Igrejas locais. 
O tom geral é de confirmação da direção tomada pelo Vaticano II, com acentuada prudência, mas também com a consciência do papel da Igreja Católica na complexa rede das presenças cristãs no mundo. 
Em cerca de 60 páginas (publicadas pela Libreria Editrice Vaticana) e 42 números, apresenta na primeira parte «A promoção do ecumenismo na Igreja católica» e na segunda «As relações da Igreja católica com os outros cristãos». 
O texto é pontuado por breves resumos que contêm indicações práticas. E é completado, nas últimas 20 páginas, por um útil apêndice em que se elencam as Igrejas cristãs que estão em diálogo com a Igreja católica. 
Retomando o rumo espiritual corajoso dos textos conciliares (Unitatis redintegratio, Lumen gentium) e as encíclicas Ut unum sint (João Paulo II, 1995) e Evangelii gaudium (Francisco, 2013), o vademécum renova e atualiza para os bispos o Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre ecumenismo do Conselho Pontifício de 1993.

Diálogo entre os cristãos: dom e responsabilidade

O compromisso a favor da unidade das Igrejas é essencial para a nossa identidade cristã: «A busca da unidade cristã não é um ato facultativo ou de oportunidade, mas uma exigência que brota do próprio ser da comunidade cristã» (Ut unum sint). Numa época de renovados impulsos identitários que atravessam nações e corpos sociais e também as confissões cristãs, é importante confirmar a centralidade do batismo partilhado e o reconhecimento de que as confissões são «meios de salvação» mesmo se em comunhão não completa com a Igreja católica. 
O manifesto abrandamento do interesse ecuménico nas várias confissões não deve obscurecer os grandes passos dados na segunda metade do século XX e a consciência do percurso ecuménico como um dom do Espírito de Cristo, com a consequente instrução recordada pelo Papa Francisco: «caminhar juntos, rezar juntos, trabalhar juntos». 
O tom prudente e uma certa cautela no caminho são reconhecíveis não só na referência ao quadro normativo dos Códigos (ocidental e oriental), mas também nas repetidas referências que pontuam o texto. No n. 17 recorda-se que algumas comunidades não aceitam a oração comum, no n. 19 que a abertura ecuménica nem sempre é correspondida e no n. 31 que se deve proceder «gradualmente e com cuidado, sem excluir as dificuldades». 
O dado mais evidente é a não alteração da partilha da vida sacramental (communicatio in sacris) reconduzida à norma atual. «A participação nos sacramentos da eucaristia, da reconciliação e da unção dos enfermos deve ser reservada em geral àqueles que estão em plena comunhão» com a Igreja. Para além dos casos previstos, tais como perigo de morte ou «necessidade grave», não é permitida a intercomunhão. É tarefa dos bispos reconhecer a condição de «necessidade grave», mas «a partilha dos sacramentos nunca pode acontecer por simples cortesia».

As estruturas e a tonalidade partilhada 

O bispo como princípio visível da unidade não pode eximir-se à opção da Igreja em favor do ecumenismo, a ter em conta segundo uma renovada perspetiva sinodal. Entre as estruturas institucionais já previstas e, na sua maioria, já operativas, o documento recorda a nomeação do delegado para o ecumenismo e da comissão ecuménica diocesana, a colaboração com as instituições ecuménicas e o convite para o sínodo diocesano de representantes das outras confissões cristãs. 
Ao bispo compete o dever «de promover tanto o diálogo da caridade como o diálogo da verdade». A verdade e a caridade devem ser vividas em conjunto com humildade. A unidade não pode ser alcançada à custa da verdade, por sua vez tida em conta segundo uma «hierarquia» de afirmações relativas ao fundamento da fé cristã. Com a caridade superam-se as intervenções polémicas da história e na humildade «aprende-se a receber os dons dos nossos irmãos e irmãs». 
O texto confirma a dimensão pervasiva do ecumenismo em toda a vida cristã (catequese, liturgia, caridade) e apela a uma formação específica a este respeito para os agentes pastorais, em particular para os seminaristas e os presbíteros. Acrescenta uma nova atenção aos meios de comunicação social e à web de cariz eclesial.

Feridas do passado e tarefas do presente 

Na segunda parte, apresentam-se as áreas do trabalho ecuménico: o ecumenismo espiritual, o diálogo da caridade, da verdade e da vida. Neste último distinguem-se os âmbitos pastoral, prático e cultural. 
Na base está a convicção de que a unidade é um dom do Senhor e não uma conquista nossa. Alimenta-se da oração e é posta em prática através da conversão e da reforma eclesial contínuas. Como diz o card. W. Kasper: «Só a conversão do coração e a renovação da mente podem curar os laços feridos de comunhão». 
A Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, que geralmente tem lugar de 18 a 25 de janeiro, tornou-se já uma tradição. 
A oração torna-se mais facilmente comunitária face às necessidades do mundo: guerra, pobreza, migrantes, injustiça e perseguição, etc. 
A leitura conjunta das Escrituras é um excelente instrumento para alcançar a unidade. Muitas vezes existe também um lecionário comum e uma tradução interconfessional. É desejável a partilha do ministério da pregação, a troca do ambão. Os tempos fortes do ano litúrgico podem ser uma ocasião propícia, assim como a memória dos santos e dos mártires. As comunidades religiosas, os mosteiros ou os movimentos eclesiais são lugares preciosos de diálogo. 
A tarefa prioritária é a purificação da memória histórica e o perdão recíproco, como no caso da remissão das excomunhões entre Paulo VI e Atenágoras em 1965. Outro exemplo positivo é a releitura comum da história como no documento relativo ao 500º aniversário da Reforma protestante (Do conflito à comunhão). «O que aconteceu no passado não pode ser alterado, mas pode, todavia, mudar, com o passar do tempo, o que é recordado do passado e de que modo». 
O diálogo da caridade apoia a participação nas estruturas que o movimento ecuménico deu a si mesmo, a troca de mensagens, os encontros e as geminações. 
O diálogo da verdade não é uma defesa arrogante, mas um gesto de estima para com o interlocutor, e tem como objetivo a unidade da fé. «O diálogo teológico não procura um mínimo denominador teológico comum para chegar a um compromisso, mas baseia-se antes no aprofundamento de toda a verdade, que Cristo deu à sua Igreja e que, movidos pelo Espírito Santo, não deixamos nunca de compreender melhor». 
O trabalho do Conselho Pontifício nos diálogos bilaterais e multilaterais, assim como o de numerosas comissões nacionais e diocesanas alimenta o campo das convergências de fé e relança ulteriores reflexões. Existem lugares e siglas preciosas, mesmo fora dos enquadramentos institucionais, como o Grupo Dombes, o grupo de trabalho ecuménico entre evangélicos e católicos alemães, a Pro Oriente, as Conversações de Malines, o grupo Santo Ireneu, etc.

Fazer sozinhos apenas o que não se pode fazer em conjunto 

O diálogo da vida inspira-se no «princípio de Lund» segundo o qual os cristãos «devem agir em conjunto em todas as áreas, exceto quando diferenças profundas os obrigam a agir separadamente». 
O ecumenismo pastoral manifesta-se sobretudo no evitar do espírito de competição entre confissões e comunidades cristãs, e na organização conjunta da ação pastoral em hospitais, prisões, capelanias escolares, mas também na concessão aos outros de espaços celebrativos. «O movimento ecuménico sempre teve no seu centro a missão evangelizadora da Igreja», para tornar a mensagem evangélica credível, especialmente onde a presença cristã é minoritária. 
A partilha dos sacramentos já foi mencionada. A sua exigência é particularmente evidente nos casamentos mistos, tanto na sua preparação como na celebração, e nos acontecimentos relevantes, designadamente o nascimento e a educação dos filhos. 
Um ponto delicado é a mudança de pertença confessional, que não deve ser acompanhada por um triunfalismo proselitista, mas eventualmente regulada por códigos de conduta, especialmente quando se trata do clero. 
O ecumenismo prático visa a colaboração entre confissões para a salvaguarda da dignidade humana e o alívio dos sofrimentos em caso de catástrofes e calamidades. Isto inclui a imigração e o cuidado da criação. O diálogo inter-religioso também é útil neste contexto, porventura de acordo com outras confissões. No passado as diferenças culturais reforçaram as divergências teológicas. Agora o ecumenismo cultural deveria inverter o paradigma, através do trabalho conjunto no âmbito académico, científico, artístico, social e mediático. 

As correntes profundas 

O longo apêndice que enumera os 14 diálogos bilaterais e três multilaterais constitui um breve e útil mapeamento de um confronto extenso e complexo que torna evidente um património teológico comum de grande relevo. Poder-se-ia falar de um vasto magistério partilhado com a advertência de não equiparar a sua autoridade ao magistério de cada Igreja, mas também suscetível de solicitar e alimentar uma receção no conjunto do povo de Deus e das diferentes confissões. 
Um resultado inimaginável até há algumas décadas. Basta recordar os seis documentos do diálogo entre a Igreja católica e as Igrejas ortodoxas, O dom da autoridade (1999) entre católicos e anglicanos, a Declaração conjunta sobre a doutrina da justificação (1999) entre a Igreja católica e a Federação luterana mundial ou Igreja: rumo a uma visão comum (2013) entre católicos e o Conselho ecuménico das Igrejas. 
Entre as dinâmicas profundas subjacentes ao texto, é possível recordar o renovado e discutido protagonismo político das comunidades pentecostais da América Latina e das Igrejas ortodoxas da Europa de Leste, que podem ser colocadas no âmbito do ecumenismo cultural. Ou ainda a dramática cisão em ato que se vem desenvolvendo nas Igrejas ortodoxas de raiz eslava e helénica, discretamente evocada na distinção entre Igrejas autocéfalas reconhecidas e «Igrejas autónomas», iniciada com o reconhecimento da autocefalia da Igreja ucraniana por Constantinopla. 
O «ecumenismo do sangue» é, por seu lado, expressamente sublinhado. Com mais de 150 milhões de cristãos sujeitos à perseguição, ganha relevo a nota do Papa Francisco: «Aqueles que perseguem os cristãos reconhecem melhor do que os próprios cristãos a unidade que existe entre eles». Afinal, a unidade é «já perfeita no que todos consideramos o auge da vida de graça, a martyria até à morte, a comunhão mais verdadeira que existe com Cristo» (Ut unum sint, n. 84).

As responsabilidades da Igreja católica 

Estão em ação contextualmente tendências centrípetas e centrífugas. Se a Aliança mundial das Igrejas reformadas e o Conselho ecuménico reformado se uniram na Comunhão mundial das Igrejas reformadas, e se um processo análogo está na origem da Conferência menonita mundial e da Comunhão das Igrejas protestantes na Europa, é necessário registar também uma distância crescente entre a Ortodoxia e as Igrejas protestantes, e entre as Igrejas anglicanas do terceiro mundo e as Igrejas anglicanas do Ocidente. 
Ainda largamente pouco percecionado é o diferente dinamismo de crescimento entre a relativa estabilidade das Igrejas históricas e o crescimento das novas comunidades pentecostais. Se o Conselho ecuménico das Igrejas representa 500 milhões de fiéis, as novas Igrejas carismáticas reúnem mais de 500 milhões (apenas em parte coincidentes com os primeiros). E, embora o diálogo com as primeiras tenha produzido convergências significativas, o diálogo com as segundas está apenas no início. Não é casual o nascimento do Fórum cristão mundial, que reúne não só algumas Igrejas históricas, mas também novas comunidades e alianças cristãs, sem o constrangimento de uma adesão formal. 
Voltando ao interlocutor do documento, o bispo diocesano, é útil sublinhar que lhe é confiada com uma consciência nova a responsabilidade do ecumenismo. Num contexto em que não faltam tensões, recuos, impulsos secularistas e urgências inter-religiosas, a Igreja católica reconhece aos pastores a grave responsabilidade do percurso ecuménico. «Os católicos não devem esperar que sejam os outros a aproximarem-se deles, mas devem estar sempre prontos a dar o primeiro passo em direção aos outros». Nem sempre tem sido assim. 

Lorenzo Prezzi

Veja-se o documento na sua versão portuguesa.