Um abalo para a liderança do Patriarcado de Moscovo liderado por Kirill, que defende a malfadada decisão de Vladimir Putin de invadir a Ucrânia; um caso de consciência para o episcopado, o clero e os fiéis russos, no país e no estrangeiro; a possível reunificação das Igrejas Ortodoxas que têm o seu centro em Kiev e que há três anos têm dado azo polemicamente à contraposição entre a Igreja Ortodoxa Autocéfala Ucraniana (IOAU), ligada ao Patriarcado de Constantinopla, com a qual o Santo Sínodo de Moscovo rompeu a comunhão eucarística, considerando-a cismática, e a Igreja Ortodoxa Ucraniana (IOU), ligada ao Patriarcado de Moscovo e dirigida por Onufriy; a fratura na Ortodoxia, com o Patriarcado de Bucareste a apelidar o russo de «cínico». Estes são os «efeitos colaterais» – imprevistos? – da operação militar especial russa contra a República irmã.
O juízo oposto de Kirill e Onufriy
A 24 de Fevereiro, Kirill anunciou: «É com profunda dor no meu coração que sinto o sofrimento do povo, causado pelos acontecimentos em curso. Como Patriarca de uma Igreja cujo rebanho se encontra na Rússia, na Ucrânia e noutros países, compadeço-me de todas as pessoas atingidas pela desgraça. Exorto as partes em conflito a fazerem todo o possível para evitarem vítimas entre civis».
Por seu lado, Epifanij, primaz da IOAU, ficou totalmente do lado de Kiev e contra o Kremlin. E o primaz da IOU, Onufriy, disse: «Defendendo a soberania e integridade da Ucrânia, apelamos ao presidente da Rússia e pedimos-lhe que cesse imediatamente a guerra fratricida. Os povos ucraniano e russo surgiram das fontes batismais do Dniepr, e a guerra entre estes dois povos é uma repetição do pecado de Caim, que matou o seu irmão por ciúme. Uma tal guerra não tem justificação, nem perante Deus nem perante os homens».
O Santo Sínodo de IOU faz seu o apelo de Onufriy; mas alguns bispos foram mais longe: ignoraram o nome de Kirill durante a «divina liturgia» (missa), a partir do domingo 6 de março. Para a Ortodoxia, quando o bispo celebra, tem necessariamente de recordar o primaz da Igreja com que está em comunhão. Não o fazer é um gesto cismático. No entanto, os metropolitas Eulógio de Sumy, Teodoro de Mukachevo, Filaret de Lviv e mais cerca de uma dúzia “esqueceram” Kirill, explicando – disseram – que não podiam tolerar o seu silêncio sobre a «invasão» em curso.
Dezenas de párocos também o fizeram; mas depois lançaram uma proposta ousada: Onufriy deveria convocar um Concílio local – composto por todos os bispos e por representantes do clero e dos fiéis – para proclamar a autocefalia da IOU. Nova Igreja ligada a Constantinopla ou paralela ao IOAU? Em todo o caso, sem a Ucrânia, o Patriarcado russo perderia um terço dos seus fiéis.
O início da hemorragia da Igreja russa
Perante a tragédia ucraniana, mais cedo ou mais tarde Kirill terá de convocar o Concílio episcopal, ou seja, todos os bispos do Patriarcado. Será um momento crucial: se houver um consenso quase unânime a seu favor... perigo evitado. Se, contudo, a ala crítica for considerável, existe o risco de uma crise a envolver Kirill (e também o seu “ministro dos negócios estrangeiros”, o metropolita Hilarion de Volokolamsk). De facto, até fevereiro, o episcopado russo estava de acordo com a profunda irritação de Putin face à persistência de hostilidades, e mesmo violências, queridas ou toleradas pelo governo ucraniano, por nacionalistas extremistas contra os russos e os russófonos no Donbass e as repúblicas separatistas de Donesk e Lugansk; violências – isto é verdade – que são subestimadas no Ocidente. Mas alguns bispos porventura perguntam: poderão tais violências justificar uma guerra total contra a Ucrânia? Não bastaria enviar o exército russo em defesa destas zonas? Será moralmente aceitável bombardear Kiev, outras cidades e os seus hospitais?
Kirill poderá responder: a Rússia profunda apoia Putin, visto como o defensor dos direitos do nosso país e firme opositor da expansão da NATO a Leste. Mas – objeção – e se a guerra, devido às sanções internacionais, também tornar a vida quotidiana do nosso povo mais precária? Nessa altura, o confronto no Concílio episcopal tornar-se-á dramático, até porque nele pesarão as vozes críticas da Ortodoxia russa, no país e na Europa, contra a guerra e contra o patriarca.
Mais de 270 padres e diáconos russos escreveram num apelo lançado no início de março: «Lamentamos a provação a que os nossos irmãos e irmãs na Ucrânia têm sido imerecidamente sujeitos», e apelidaram a guerra em curso de «fratricida». Depois alguém agitará a Assembleia episcopal lendo a carta (número de protocolo: 2022. 010) que o metropolita Jean de Dubna, arcebispo das Igrejas Ortodoxas de tradição russa na Europa Ocidental, escreveu de Paris a Kirill a 9 de março: «Em nome de todos os nossos fiéis apelo a Vossa Santidade para que levante a sua voz como Primaz da Igreja Ortodoxa Russa contra esta guerra monstruosa e insensata [contra a Ucrânia] e interceda junto das autoridades da Federação Russa para que cesse o mais depressa possível este conflito mortal, que até há pouco tempo parecia impossível entre duas nações e dois povos unidos por séculos de História e pela sua fé comum em Cristo». Depois Jean refutou uma tese de Kirill, que indignou muitas pessoas no Ocidente. Três dias antes, de facto, o patriarca tinha criticado severamente os gay-pride, que, dizia ele, procuram, de facto, tornar lícitos comportamentos que são contra a vontade de Deus e destroem a sociedade: «Vossa Santidade, na homilia do Domingo do Perdão [6 de março], tinha insinuado que justificava esta guerra de agressão como um “combate metafísico”, em nome do “direito de estar do lado da luz, do lado da verdade de Deus, daquilo que a palavra de Cristo nos revela”. Com todo o respeito, digo-lhe que não posso subscrever esta leitura do Evangelho».
Bucareste contra Kirill. Telefonema do papa
Vários hierarcas ortodoxos – Bartolomeu à frente – intervieram, apelando ao fim imediato da «operação» russa. Por seu lado, o porta-voz do patriarcado da Roménia declarou: «O verdadeiro cristão distinguirá entre um Primaz autêntico e digno da Igreja de Cristo e um Primaz moral e cristãmente desonrado, devido à sua cumplicidade cínica com as coisas mais odiosas que o homem sem Deus é capaz de cometer: a guerra de conquista, o terror, a tortura e a morte de pessoas em massa». E Innokentzy, metropolita de Vilnius e da Lituânia, que está ligado a Moscovo: «Condenamos firmemente a guerra da Rússia contra a Ucrânia e rezamos a Deus pelo seu rápido fim... O Patriarca Kirill e eu temos opiniões políticas e perceções diferentes dos acontecimentos em curso. As suas declarações políticas sobre a guerra expressam a sua opinião pessoal. Nós, na Lituânia, não concordamos com ela».
O secretário ad ínterim do Conselho Ecuménico das Igrejas, o romeno Ioan Sauca, também implorou a Kirill que «cumpra um papel de mediador para pôr fim à guerra». Em segundo plano, uma pergunta: a Igreja Russa poderá participar na Assembleia Geral da CEI em Karlsruhe, na Alemanha, em setembro? O papa: com um gesto invulgar, a 25 de fevereiro deslocou-se à embaixada russa junto da Santa Sé para expressar a sua oposição à guerra. E o núncio em Moscovo, Giovanni D'Aniello, a 3 de março encontrou-se com Kirill que – precisaria depois o comunicado – recordou com agrado o seu encontro com Francisco, em Cuba, em 2016; mas nenhuma referência explícita à Ucrânia. Posteriormente, no domingo 6, Bergoglio disse: «Na Ucrânia correm rios de sangue e de lágrimas... A guerra é uma loucura». E no dia 13: «Em nome de Deus, ponde fim a este massacre! Procure-se verdadeiramente e de forma decisiva a negociação». Uma mediação do Vaticano? Embora o Papa a tal esteja predisposto, está-lo-á Putin, após ter consultado Kirill? No dia 16, Francisco e o patriarca realizaram uma videoconferência. O primeiro reiterou que «não há guerra justa» mas, segundo o comunicado de Moscovo, os dois «discutiram formas de ultrapassar as consequências da crise em curso».
Luigi Sandri
Confronti (março 2022)