27/07/2019

Morrer por Kiev? Um trágico duelo eclesial


Irresolúvel. É este, por agora, o nosso “diagnóstico” – depois de termos escutado in loco as partes contrapostas – do puzzle das Igrejas ortodoxas ucranianas, em que a maioritária (IOU), ligada ao Patriarcado de Moscovo, liderado por Kirill, considera “cismática” a recém-nascida e autocéfala Igreja ortodoxa da Ucrânia (IODU), abençoada pelo Patriarcado de Constantinopla, liderado por Bartolomeu, mas já ameaçada pelo autoproclamado “patriarca” de Kiev, Filaret, se bem que tenha sido patrocinador, juntamente com o presidente Petro Poroshenko, da “independência” eclesial ucraniana.

As etapas do cisma

Com uma equipa de Protestantesimo (Raidue), dirigida pelo realizador Paolo Emilio Landi, estivemos em Kiev, de 22 a 25 de junho, para compreendermos melhor os intrincados acontecimentos: já muito se escreveu sobre eles em Confronti e aqui o recapitulámos em flash.
9/4/2018: Poroshenko desloca-se ao Fanar, a residência em Istambul dos patriarcas de Constantinopla, para pedir a concessão da autocefalia da Igreja ucraniana. A 19, a Verkhovna Rada (Parlamento de Kiev) apoia a proposta.
31/8: Kirill, acompanhado pelo metropolita de Volokolamsk, Hilarion, “ministro” dos negócios estrangeiros do Patriarcado russo, chega ao Fanar para reafirmar o “não” seco da Igreja russa à hipotética autocefalia. Bartolomeu permanece vago.
7/9: O Fanar anuncia o envio de dois dos seus bispos a Kiev para preparar a concessão da autocefalia.
14/9: O Santo Sínodo de Moscovo reconhece que a Igreja de Kiev é também a Igreja mãe da Igreja russa, mas recorda que em 1686 Constantinopla confiou a este Sínodo a metrópole de Kiev; o Fanar não pode, pois, interferir nos seus assuntos internos. Se Bartolomeu prosseguir com a “independência” ucraniana, Moscovo suspenderá a sua participação em Assembleias e comissões presididas ou copresididas por representantes do Patriarcado de Constantinopla; e interromperá totalmente a comunhão eucarística com ele. E precisa: no país só é canónica a Igreja ortodoxa ucraniana (IOU), liderada pelo metropolita Onufriy de Kiev, ligada a Moscovo.
15/9: O arcebispo Job de Telmessos (Fanar) reafirma: Constantinopla tem o direito de proclamar a autocefalia da Ucrânia, como nos séculos XIX e XX proclamou a das Igrejas da Roménia, Sérvia, Bulgária.
11/10: Bartolomeu e o seu Sínodo decidem: 1) “avançar” em direção à “independência” ucraniana; 2) restabelecer nos seus lugares hierárquicos Makariy Maletich (da pequena e já existente Igreja autocéfala ucraniana) e Filaret Denisenko (o autoproclamado “patriarca” de Kiev, reduzido ao estado laical em 1992 e em 1997 excomungado pelo Santo Sínodo russo, do qual tinha, contudo, feito parte durante tantos anos); 3) revogar o vínculo jurídico da carta sinodal de 1686.
15/10: O Santo Sínodo de Moscovo: 1) interrompe a comunhão eucarística com Constantinopla (teologicamente, a proclamação do cisma); 2) reivindica a Ucrânia como seu território canónico; 3) recusa a revogação da carta de 1686; 4) exprime desconcerto pela reabilitação do “cismático” senhor Filaret.
15/12: Em Kiev, realiza-se o “Concílio da reunificação” entre a Igreja de Makariy e a Igreja de Filaret. É criada a Igreja ortodoxa da Ucrânia (IODU), autocéfala, e é eleito como seu primaz Epifaniy. Dos 90 bispos da IOU, só dois entram nela. O embaixador dos EUA em Kiev aplaude a nova Igreja. O Kremlin cala-se.
5/1/2019: Bartolomeu, na presença de Proshenko, assina o tomos – decreto sinodal – da autocefalia da IODU. E a 6 entrega-o a Epifaniy. Para Moscovo o cisma está consumado.

A palavra à Igreja ucraniana pró-russa
Numa pequena capela na periferia de Kiev, encontramos o arcipreste Nikolay Danilevich, porta-voz da IOU. Fala um pouco de italiano e um pouco de russo:

«Até 1992, neste país havia, na prática, uma só Igreja ortodoxa, inserida num exarcado do Patriarcado de Moscovo. Filaret era metropolita de Kiev: este e outros, depois do colapso da URSS, queriam absolutamente a autocefalia. A Igreja russa não era, por si mesma, contrária à hipótese; mas relevava: “A situação agora está muito confusa; é preciso esperar”.
Mas ele prosseguiu, apoiando o autoproclamado Patriarcado de Kiev de que em 1995 seria eleito titular. Uma realidade não canónica, como o era a pequena Igreja de Makariy… Com o assim chamado “Concílio de reunificação”, abençoado pelo Fanar, estas duas Igrejas fundiram-se e formaram a IODU. A 5 de janeiro, Bartolomeu deu-lhe a independência canónica. Mas a IOU não entrou nesta nova Igreja, para nós cismática. E até agora nenhuma das 14 Igrejas ortodoxas autocéfalas a reconheceu como a 15ª Igreja autocéfala. Ela tem cerca de 4.000 paróquias; a nossa, 12.500.

Não se misturam demasiado, nestes acontecimentos, questões religiosas e políticas?

Certamente que sim. Poroshenko esteve presente em todas as etapas que conduziram à autocefalia. Foi o Fanar que a defendeu. Geria o “Concílio” de dezembro. Talvez esperasse que este seu empenho, juntamente com a retórica nacionalista antirrussa, o conduzisse à vitória nas eleições presidenciais de há dois meses [a segunda volta realizou-se a 21 de abril, ndt]; mas perdeu-as, e venceu-as Volodymyr Zelenskij. Em suma, a instrumentalização política da religião não funcionou. Além disso, a Igreja não é um departamento do Estado e não está vinculada às suas ideologias. Nós não estamos unidos nem contra o Leste nem contra o Oeste.

Porque é que refutam o método do Fanar para a concessão da autocefalia?

Porque conduz ao cisma, como demonstra o que aconteceu a 20 de junho. Flaret, apesar dos veementes protestos da IODU, convocou naquele dia o seu próprio Concílio local para proclamar que o “Patriarcado de Kiev”, de que se proclama titular, continua a existir; trata-se de um cisma no cisma da Igreja autocéfala! De qualquer modo, nós não reconhecemos como válidos os sacramentos da IODU: se uma pessoa nela batizada vem até nós, rebatizamo-la. 

Padre Nikolay, como se sai deste imbróglio?
Não sou profeta e não sei como acabará. Muitas Igrejas ortodoxas locais (=autocéfalas) propõem que se celebre uma Sinassi – cimeira dos vários primazes –, ou um Concílio ortodoxo para resolver uma questão que interpela toda a Ortodoxia. Os responsáveis da “independência” ucraniana têm de vir ao Concílio e arrepender-se do que fizeram. Esperamo-los de braços abertos. Esquecemos as suas más palavras contra nós».


A palavra à nova Igreja autocéfala 

Brilham ao pôr-do-sol as cúpulas douradas do mosteiro de São Miguel, onde encontramos o arcebispo Yevstratiy, porta-voz da IODU.

«O que é que aconteceu na Ucrânia nos últimos 30 anos?
Temos uma ferida e é preciso tempo para a curar.
Antes do “Concílio da reunificação” de dezembro aqui havia três Igrejas ortodoxas; depois duas uniram-se, enquanto a Igreja pró-russa ficou de fora. Em 1991 foi proclamada a independência da Ucrânia. Mas o Patriarcado de Moscovo ainda crê que a Ucrânia não é um Estado real mas só uma parte da Grande Rússia. Tem uma mentalidade imperial… Em nós, o sentimento religioso e o sentimento nacional estão muito entrelaçados: como há uma Igreja autocéfala na Roménia, na Sérvia, na Bulgária… porque é que Moscovo não quer uma Igreja autocéfala ucraniana?

Por enquanto, todavia, nenhuma Igreja ortodoxa reconhece a CODU.

Iniciamos um processo; é preciso paciência e confiança. O consenso há de chegar. Mais cedo ou mais tarde as circunstâncias políticas mais complicadas vão mudar, como aconteceu em 1991 com o fim da União Soviética. Quando o regime do Kremlin cair, também a posição do Patriarcado de Moscovo mudará. Em todo o caso, é inegável que, do ponto de vista religioso, a Igreja ucraniana é uma “filha” – nascida em 988 – da Igreja-mãe de Constantinopla. Por isso lhe pedimos a autocefalia. Acrescento que a Igreja de Moscovo nunca condenou a agressão russa contra a Crimeia e as interferências russas no nosso país. Para Kirill, a agressão em ato a partir de 2014 na Ucrânia oriental (provocou, até agora, mais de 13.000 vítimas e também enormíssimos danos ecológicos) é uma “guerra civil” intraucraniana!

E o recentíssimo (20 de junho) minicisma de Filaret?
É um caso pessoal.
Mas não é coisa pequena – salientamos. A 24 de junho o Sínodo da IODU reuniu-se, liderado por Epifaniy, para precisar o que já tinha sido dito num comunicado de 20 de junho: 1) O Concílio convocado por Filaret é ilegal; 2) Não se pode falar de “cisma” (porque – subentende-se – não teve um séquito significativo); 3) As paróquias já vinculadas ao Patriarcado de Kiev passam todas à IODU; 4) No “Concílio de reunificação” o Patriarcado de Kiev tinha aceitado confluir para a recém-nascida Igreja autocéfala; 5) Reconhecendo os méritos especiais, no passado, para com a Igreja ortodoxa ucraniana, o Sínodo decidiu que o patriarca Filaret permanece como parte do seu episcopado».
Sublinhamos, por fim: fontes da IODU disseram-nos que não veem que seja possível que um Concílio desminta o que realizou Bartolomeu. Além disso, tanto o P. Nikolay como o bispo admitiram que os ortodoxos ucranianos pouco sabem desta diatribe; frequentam muitas vezes a igreja mais próxima sem se perguntarem a que jurisdição pertence (mas os pró-russos arriscam-se a passar por “traidores da pátria!”). Ambos nos confirmaram ainda que, excetuando contributos para manter ou restaurar obras de arte preciosas – igrejas, mosteiros –, não recebem ajudas do Estado.

Putin junto do papa: não resolvido o problema ucraniano 

A 4 de julho, o presidente russo Vladimir Putin foi recebido em audiência (foi a terceira vez) pelo papa. Expressa satisfação pelo desenvolvimento das relações bilaterais – afirmou depois num comunicado: «Foram enfrentadas algumas questões de relevo para a vida da Igreja católica na Rússia. Detivemo-nos depois na questão ecológica e em alguns temas da atualidade internacional, com particular referência à Síria, à Ucrânia e à Venezuela».
Sobre o Médio oriente, ambos – disse-se – concordam com a urgência de defender aí as minorias cristãs, colocadas em perigo por conflitos e perseguições por parte de grupos extremistas islâmicos. Mas sobre a Ucrânia? O comunicado não especifica: Putin e Francisco talvez não estejam de acordo. Com efeito, para a Santa Sé, a questão da Crimeia e da Ucrânia oriental deve resolver-se com base no direito internacional; para o chefe do Kremlin, um retrocesso na península da Ucrânia é impensável.
E a hipótese de uma viagem do papa à Rússia? O Santo Sínodo russo, hoje, é contrário à ideia; e Putin, por agora (por agora!), não se quer impor. A 12 de fevereiro de 2016, deu-se em Havana o primeiro encontro de um papa com um patriarca de Moscovo: um encontro malvisto por setores importantes – como o mundo monástico – da Ortodoxia russa. Além disso, nas vésperas do grande acontecimento de 4 de julho, um porta-voz do Patriarcado, Vladimir Legoyda, precisava: «A Igreja russa não tem comentários a fazer sobre o encontro entre dois chefes de Estado». Acrescentava, todavia, que ele «é importante e útil, dado que o Vaticano e a Rússia defendem o matrimónio tradicional e a família, e protegem os direitos dos cristãos em regiões onde são perseguidos».
De qualquer forma, Francisco, sobre a questão da hipotética viagem à Rússia, não quer forçar, contrariamente ao que fez João Paulo II. Este, apesar do “não” explícito de Eleksij II, então Patriarca de Moscovo, em junho de 2001 visitou a Ucrânia; e, no encontro ecuménico com ele, quem o saudou em nome de todos? O “patriarca” Filaret; uma bofetada para os russos. Dois anos depois Woityla tinha projetado ir, em agosto, a Ulan Bator, na Mongólia, e, nessa ocasião, contava fazer uma escala em Kazan, no Turquestão – 800 Km a leste de Moscovo – para entregar nas mãos de Aleksij um ícone precioso, no Vaticano considerado o original desaparecido de Kazan no início do século XIX e, depois de várias peripécias, chegado de Nova Iorque como oferta ao papa polaco. Perante a nítida recusa do patriarca, aquele pontífice cancelou toda a viagem. 

O contraponto dos greco-católicos ucranianos 

Depois da ouverture da cimeira papa-Putin, nos dois dias seguinte houve outra no Vaticano, já anunciada há dois meses: Francisco, com três cardeais da cúria (entre eles Parolin), juntamente com Sviatoslav Shevchuk, arcebispo maior de Kyiv-Halyc, e os membros permanentes do seu Sínodo, mais os metropolitas. Esta reunião tinha por objetivo «individuar os modos com que a Igreja católica na Ucrânia, e de modo particular a Igreja greco-católica, se pode dedicar mais eficazmente à pregação do Evangelho, contribuir para o apoio aos que sofrem e promover a paz, tanto quanto é possível, com a Igreja católica de rito latino e com as outras Igrejas e comunidades cristãs». 
A propósito da ajuda humanitária a Kiev, recorde-se que com o projeto O Papa para a Ucrânia, iniciado em 2016, Francisco e os organismos do Vaticano enviaram para lá 16 milhões de euros em víveres, materiais, ajudas várias. Após o encontro, na noite de 6 de julho, um comunicado do Vaticano resumia os resultados. Depois de ter dito que o papa apreciou muito a fidelidade dos greco-católicos «à comunhão com o Sucessor de Pedro, confirmada e selada com o sangue dos mártires», precisava: «Foi dedicada particular atenção ao trabalho pastoral, à evangelização, ao ecumenismo, à vocação específica da Igreja greco-católica no contexto dos desafios hodiernos da situação sociopolítica, particularmente da guerra e da crise humanitária na Ucrânia».
A “guerra” na Ucrânia é, portanto, nomeada: mas quem a provocou? O texto não diz. Contudo, nas vésperas do encontro, Shevchuk tinha declarado: «A guerra não pode terminar com uma paz a qualquer custo; seria uma capitulação. É impossível a paz sem justiça». E a 28 de janeiro de 2018, o papa em visita à basílica de Santa Sofia – o centro dos greco-católicos ucranianos em Roma – tinha recordado a “agressão” russa contra a Crimeia. 

Entre religião e política 

Algum flash histórico, para que se compreenda tal atitude. No fim do século XVI, a Ucrânia centro-ocidental estava nas mãos dos reis polaco-lituanos, católicos, enquanto a parte oriental do país estava ligada aos czares, ortodoxos. Em 1595, dois bispos ucranianos reconheceram em Roma a autoridade do papa Clemente VIII e, no ano seguinte, no Sínodo de Brest Litovsk, a maioria dos bispos confirmou esta opção dos “uniatas” (assim chamam os ortodoxos aos gregos unidos a Roma). Em 1946, um pseudossínodo em Lviv, imposto por Estaline, declarou nula a união de 1596: os greco-católicos tornavam-se, pois, por lei, ortodoxos. Quem não aceitou, a começar por bispos e padres, sofreu perseguição e foi preso. Depois, na Ucrânia independente, eles foram e são a ponta de lança para afastar o país da Rússia. Shevchuk considera-se, de facto, “patriarca” greco-católico (e tem dioceses não só na pátria, mas também no estrangeiro, particularmente nas Américas. No conjunto cinco milhões de fiéis), o que irrita Moscovo e também desagrada a Roma. 
Terá solução o conflito eclesial ucraniano? Entretanto, ele mistura-se com a política. Se a Ucrânia se tornar a linha avançada do Ocidente e a sentinela da Casa Branca e da NATO para manter a Rússia em rédea curta, tudo vai piorar; só um novo rumo entre Kiev e Kremlin, e vice-versa, poderia iniciar uma clarificação. E na frente religiosa? Hilarion, nestes meses, em Damasco, Jerusalém e Atenas, defendeu, com os respetivos patriarcas e primazes, a causa russa.
Mas o arcebispo ortodoxo do Chipre, Chrysostomos, esforça-se por reconciliar Kirill e Bartolomeu, tarefa porventura possível no futuro, mas não hoje: em conjunto com razões históricas e canónicas, agravam agora o terreno rivalidades pessoais e institucionais que complicam tudo. Kirill não aceitará nunca que um excomungado do Santo Sínodo seja reabilitado por Bartolomeu.
Enquanto um personagem obscuro e inquietante como Filaret continuar a tecer as suas tramas, a solução do trágico conflito intraortodoxo será impossível. Depois, para alegria da Primeira Roma, a Segunda (Constantinopla) e a Terceira (Moscovo) talvez – nada, porém, é dado como certo – encontrem a paz.

Luigi Sandri
Paolo Emilio Landi
Confronti (julho de 2019)