20/04/2018

Gregório de Narek nosso contemporâneo

Na história arménia, o século X é geralmente considerado o início da “era da prata”. Este período distinguiu-se pela prosperidade da vida monástica, pela fundação de mosteiros e igrejas, pela criação de ricas obras literárias, por uma interação mais estreita com as escolas teológicas e filosóficas do tempo e pela promoção das artes. Todos os problemas pertinentes e as perguntas fundamentais da época ressoaram, de um modo ou de outro, na vida e no pensamento de Gregório de Narek (em arménio, Krikor Narekatsi), um dos grandes místicos do cristianismo mundial.
As informações sobre a sua vida são bastante escassas. Nasceu em 950. Ordenado monge em 977, cedo foi nomeado mestre de patrística, posição reservada aos monges que se tinham distinguido intelectualmente. Assimilou plenamente as ciências escolásticas conhecidas como trivium e quadrivium, e era perito em filosofia e espiritualidade oriental.
Considerado santo ainda em vida, Gregório produziu uma obra que é justamente definida o ápice da espiritualidade arménia, assim como uma das obras-primas do misticismo mundial. O livro é conhecido com diversos títulos e, popularmente, com o de Narek . A identificação do autor com a obra é tal que torna difícil distinguir entre ele e o Narek, expressão autêntica da luta contínua de Gregório para entrar em comunhão com Deus. A obra é uma recolha de 95 discursos, com 336 subdivisões. Não se trata de uma prece a Deus, mas de um «diálogo com Deus, do fundo do coração».
O colóquio entre Deus e o homem apresenta duas questões centrais: quem é o ser humano? Qual é a sua vocação no mundo? No Narek estas perguntas são enfrentadas sob diversas perspetivas e em diferentes contextos, mas sempre numa relação dialética com Deus. O autor está diante de Deus, representando a humanidade inteira. Buscando Deus, ele procura a própria identidade e destino. A compreensão que tem de si mesmo é determinada e condicionada por Deus. Sem Deus, considera-se «desprovido de significado e de finalidade». Compreende o seu ser, a sua existência e o seu destino unicamente em Deus e por meio de Deus.
Gregório é um grande místico, um teólogo extraordinário e um poeta humanista. Estas três dimensões da sua pessoa e do seu pensamento estão intimamente interligadas. O seu misticismo não é negação de si, mas sobretudo afirmação de si mesmo, destinada a recuperar e a redescobrir a imagem de Deus no ser humano. O misticismo do autor é também existencial; nasce de uma espiritualidade vivida. Não é uma fuga do mundo; ao contrário, é um compromisso no mundo de injustiça e de sofrimento, com a clara ideia de transformar a humanidade e a criação com a graça de Deus, através de Jesus Cristo e no poder do Espírito Santo.
A teologia de Gregório é mais espiritual que racional, mais existencial que metafísica, mais dialogal que prescritiva. O autor leva a teologia para fora dos seus confins doutrinais e da esfera transcendente, desenvolvendo-a no contexto de uma relação viva com Deus e com a sua criação. A composição deste pioneiro do renascimento arménio não é uma forma clássica de hinologia, mas poesia pura, tocada pela graça divina; nos seus versos estão presentes os mistérios e as belezas da natureza.
A teologia de Gregório é tanto dialogal como dialética. A visão do absoluto provém do alto e gera uma resposta humana. Para o autor, o ateísmo é uma impossibilidade ontológica. Deus é a fonte, o centro e o fim da vida humana. O pecado original do primeiro homem criou uma divisão entre os seres humanos e Deus. Não se trata de uma dicotomia ontológica; é provisória, por ser devida ao pecado humano. O fim do processo, sustentado pelo amor e pela graça de Deus, é reconciliação e unificação com Deus. Em Gregório, o conceito de unificação com Deus é o ortodoxo de theosis, realçado pelo misticismo oriental. A theosis é a incorporação na natureza divina, sem fusão nem mistura. Ela só é alcançada mediante a intervenção da graça divina e a resposta humana obediente. A theosis não é pessoal; o processo abrange a criação inteira. A meta do misticismo do autor não é a descoberta do infinito, mas a redescoberta de si mesmo no infinito e por meio do infinito. É também uma profunda consciência da presença salvífica de Deus, no poder do Espírito Santo, na humanidade e em toda a criação.
O pensamento de Gregório é dominado por criativa imaginação e rica alegoria. A sua imaginação é tão vasta e profunda que supera os confins do concreto e do visível, e procura penetrar até no mistério divino. O diálogo apaixonado com Deus transcende lógica e razão. É preciso lê-lo várias vezes para discernir as principais correntes do seu pensamento e entender o seu significado. Com efeito, cada frase, e até cada palavra do Narek , descerra ao leitor uma renovada dimensão ou um novo horizonte. O autor recorre abundantemente a metáforas e temas bíblicos, e a sua linguagem é parabólica e repleta de contrastes e paradoxos.
Para Gregório, a oração é o fulcro da relação entre Deus e a humanidade; é uma cura poderosa para corpo e alma. Ele dirige-se a Deus como a um verdadeiro curador: «Sara-me como um médico». Com efeito, o Narek é essencialmente um livro de oração.
A liturgia da Igreja arménia está cheia de preces tiradas do Narek. Muitas vezes os fiéis põem o Narek debaixo do travesseiro dos doentes, julgando que tem o poder de curar. O Narek é uma tentativa audaz de se colocar diante de Deus em nome de toda a humanidade, para conversar com Ele, protestar contra a injustiça e o sofrimento, deplorar a crueldade dos seres humanos e enfrentar a realidade do pecado. É também a vigorosa busca de uma nova visão da humanidade e de uma autêntica existência humana, transformada pela graça divina. O autor recorda a todos os teólogos que a teologia não é um discurso teológico a respeito de Deus mas, fundamentalmente, um esforço de fé, amparado pela razão, para falar com Deus, e que fazer teologia implica engajar-se numa relação viva com Deus e a sua criação. Não é ocasional que o Narek tenha sido companheiro de muitos arménios e que o povo arménio o tenha considerado uma “segunda Bíblia”.
Segundo a tradição, Gregório faleceu em 1003 e foi sepultado no mosteiro de Narek. Em 1021, quando os arménios daquela região foram obrigados a abandonar a terra natal juntamente com o seu rei Senequerim, levaram consigo algumas relíquias do santo e colocaram-nas no mosteiro de Arak. Hoje os dois mosteiros já não existem, mas São Gregório de Narek continua a viver no coração de cada arménio, com o seu “monumento eterno”. Este santo monge, mediante o seu diálogo com Deus, o seu pedido de sentido e de salvação, e a sua luta pela libertação e a transformação permanece nosso eterno contemporâneo.
Aram
Catholicos da Igreja arménia apostólica da Cilícia

L'Osservatore Romano. Edição semanal em Português (12 de abril de 2018) 12