29/06/2016

Concluiu-se o Santo e Grande Concílio da Igreja Ortodoxa

Encerrou-se no domingo 26 de junho o Concílio pan-ortodoxo realizado em Creta. Deixamos em tradução portuguesa o texto disponibilizado pela rubrica «Finestra ecumenica» do Mosteiro de Bose (Itália) sobre a conclusão e a mensagem final. Para um melhor conhecimento da preparação do concílio e das sombras que sobre ele pairaram nas semanas anteriores à sua realização, remetemos para dois textos da mesma rubrica que anteriormente traduzimos.

No domingo, 26 de junho de 2016, em Kolymbari (Creta), concluiu-se o Santo e Grande Concílio da Igreja ortodoxa com a solene celebração eucarística da festa de Todos os Santos. Como sublinhou o patriarca ecuménico Bartolomeu, que presidiu aos trabalhos do concílio, tratou-se de «um acontecimento de capital importância que nos anos e séculos que virão ocupará o seu lugar na história». O concílio – recordamo-lo – foi convocado por vontade da sinaxe dos chefes das igrejas autocéfalas reunidas em Chambésy em janeiro passado. Quatro igrejas (os Patriarcados de Antioquia, de Moscovo, da Bulgária e da Geórgia) renunciaram a participar nele. O patriarca de Moscovo Kirill, na carta enviada ao patriarca Bartolomeu e aos padres conciliares na véspera do concílio, dizia-se persuadido que tanto as igrejas que decidiram tomar parte nele, como as que consideraram que não era possível, «tomaram as suas decisões em consciência, e por isso as decisões de cada igreja devem ser consideradas com respeito».
O concílio, contudo, não só foi celebrado na data marcada, como se revelou um acontecimento de comunhão, em que, apesar das dificuldades, prevaleceu nitidamente a vontade de encontrar a unidade. 
Foi ainda o patriarca Bartolomeu, no discurso final, a reconhecê-lo com muita franqueza diante de todos «Houve dificuldades; nem tudo foram facilidades e rosas; houve asperezas, tensões, descontentamento, pessimismo sobre o resultado, mas no fim houve consenso, unidade de sentimentos, acordo, unanimidade. Todos juntos escrevemos a história!».
O concílio pôde assim discutir e aprovar por unanimidade, com uma real participação de todos os bispos presentes os documentos sobre seis temas em agenda e uma ampla encíclica que, por um lado, representa uma síntese do conteúdo dos documentos e, por outro, uma palavra evangélica de esperança dirigida ao mundo pelas situações críticas que a humanidade está a viver. Desta encíclica foi retirada uma mensagem mais breve, escrita numa linguagem mais acessível, dirigida ao povo ortodoxo e a todos os homens de boa vontade, que foi lida solenemente no domingo durante a liturgia eucarística conclusiva.
Nesta mensagem sublinha-se que «a prioridade do Santo e Grande Concílio foi proclamar a unidade da Igreja ortodoxa», que, de facto, não é, como se é tentado a pensar, uma confederação de igrejas autónomas, mas uma única Igreja. O concílio foi uma ocasião para redescobrir esta verdade, e quer ser «o primeiro passo» de um caminho conciliar que não pode e não deve terminar aqui: os padres decidiram, de facto, que concílios análogos serão convocados de agora em diante regularmente «a cada sete ou dez anos».
O concílio expressou, em seguida, a consciência de que «a Igreja não existe para si mesma», mas para o mundo: a evangelização até aos confins extremos da terra faz parte da sua razão de ser. Isto, contudo, tem de ser feito no respeito profundo pela dignidade de todos, e foi reiteradamente sublinhada a absoluta necessidade de diálogo, a vários níveis, mas sobretudo na tentativa de restabelecer a unidade entre os cristãos e de promover o conhecimento entre os crentes das várias religiões. Uma condenação nítida e sem equívoco foi reservada à explosão do fundamentalismo que é «a expressão de uma religiosidade mortífera». Para contrariar esta violência, a única solução é ainda o diálogo que «contribui de modo significativo para favorecer a confiança recíproca, a paz e a reconciliação».
Foi expressa preocupação pela situação dos cristãos e das minorias perseguidas no Médio Oriente, e fez-se um forte apelo à comunidade internacional pela proteção dos cristãos, assim como de todas as populações da região, que «têm um direito inviolável a ficarem nos seus países de origem», e para que se encontrem urgentemente soluções para os conflitos. Entretanto, deve prevalecer por parte de todos o acolhimento e a solidariedade para com quem procura refúgio e precisa de ajuda.
Foi dirigido um olhar positivo ao progresso das ciências e da tecnologia, mas juntamente com os numerosos benefícios que tal progresso oferece, sublinhou-se que também apresenta aspetos ambíguos e arriscados que requerem vigilância e uma palavra profética da parte da Igreja, que sempre «coloca o acento na dignidade do homem e no seu destino divino».
Sublinha-se particularmente que a atual crise ecológica é «evidentemente devida a causas espirituais e éticas. As suas raízes estão ligadas à cobiça, à avidez e ao egoísmo, que conduzem a um uso irracional dos recursos naturais, à poluição da atmosfera através de substâncias nocivas e ao aquecimento climático». A Igreja ortodoxa neste sentido faz-se porta-voz de um «ethos ascético» que propõe um novo paradigma humano mais respeitoso do criado e dos outros. Estes aspetos estão sublinhados em particular no documento dedicado ao jejum.
Em suma, o concílio da Igreja ortodoxa dirigiu um olhar amplo e cheio de misericórdia para o mundo, consciente de que ela já não pode ficar fechada sobre si mesma, mas tem de caminhar sempre ao lado dos homens e das mulheres de cada tempo. Tal responsabilidade deve ter certamente como termo último «a perspetiva da eternidade», mas não pode nunca esquecer o hic et nunc da história.
O Concílio, no fundo, foi um grande convite dirigido a toda a Igreja e a todos os homens para que realizem um êxodo daquela que o arcebispo Anastásios da Albânia no seu discurso inicial definiu como «a maior heresia, a mãe das heresias: o egocentrismo pessoal, coletivo, étnico, nacional e eclesial».
De modo significativo, a mensagem do concílio conclui-se afirmando que a «Igreja ortodoxa, guardando intacto o seu caráter místico e soteriológico, é sensível à dor, às angústias e ao grito pela justiça e a paz dos povos. Ela proclama “dia após dia a Sua salvação, anunciando entre as gentes a Sua glória, entre todos os povos as Suas maravilhas” (Sl 95)».
O santo sínodo do Patriarcado de Moscovo exprimirá a sua posição na sua próxima sessão ordinária de julho, enquanto o Patriarcado da Bulgária se exprimirá logo que tenha podido examinar os documentos traduzidos em búlgaro; o patriarca da Geórgia Elias enviou ao patriarca Bartolomeu uma carta de condolências pelas vítimas do ataque terrorista no aeroporto de Istambul, mas não há declarações da Igreja da Geórgia relativamente aos documentos do concílio. No dia seguinte ao encontro de Creta, o santo sínodo do Patriarcado de Antioquia decidiu não o considerar como um concílio, mas como uma reunião preliminar em vista do Concílio pan-ortodoxo com a participação de todas as igrejas autocéfalas, e os seus documentos são considerados não definitivos, mas abertos à discussão e a modificações.
A nosso ver, a convocação de um próximo concílio poderia ser um primeiro passo para uma estrutura conciliar permanente baseada em convocações sistemáticas. Nesta perspetiva, não faltarão provavelmente da parte da presidência (o patriarca de Constantinopla) sinais de profecia e gestos de uma fraternidade profundamente inspirada.
O papa Francisco, quando lhe foi perguntada a sua opinião a respeito do concílio durante o voo de regresso da viagem à Arménia, respondeu dizendo que é positiva, que se trata de uma etapa ao longo do caminho, as razões da ausência de algumas igrejas são sinceras, há coisas que se podem resolver e o simples facto de ter havido um encontro para se olharem nos olhos, rezarem juntos e falarem é muito positivo. «Estou grato ao Senhor. Haverá mais presenças no próximo encontro!».
Os irmãos e as irmãs de Bose partilham a alegria por este acontecimento de comunhão e continuam a rezar para que ele dê os seus frutos, na Igreja ortodoxa e em todo o mundo. Hoje mais do que nunca ressoam atuais as palavras do metropolita Nikodim, pronunciadas na primeira reunião preparatória pan-ortodoxa de Rodes em 1961: «Encontramo-nos diante de uma missão grande e difícil. Mas não temos medo e não estamos de modo nenhum assustados, porque a nossa tarefa é uma obra de Deus. Nós acreditamos que o Senhor consolidará e levará a cumprimento as nossas forças modestas. Conduzir-nos-á no caminho da verdade e ajudar-nos-á a alcançar o nosso objetivo para o bem e a glória da Igreja una, santa, católica e apostólica».
É para nós motivo de alegria e de ação de graças terminar esta nota referindo que o arcebispo Job de Telmessos, porta-voz do secretário do concílio, representante permanente do Patriarcado ecuménico junto do Conselho Ecuménico das Igrejas, amigo há anos da nossa comunidade, foi nomeado copresidente da comissão mista internacional para o diálogo teológico católico-ortodoxo, sucedendo ao metropolita Ioannis (Zizioulas) de Pergamo, também ele nosso querido amigo: a ambos a nossa gratidão, as felicitações fraternas e a oração fiel.

27/06/2016

Declaração comum do papa Francisco e do patriarca da Igreja Arménia Karekin II, no âmbito da visita apostólica de Francisco à Arménia

Hoje na Santa Etchmiadzin, centro espiritual de Todos os Arménios, nós, o Papa Francisco e o Catholicos de Todos os Arménios Karekin II, elevamos as nossas mentes e corações em ação de graças ao Todo-Poderoso pela progressiva e crescente proximidade na fé e no amor entre a Igreja Apostólica Arménia e a Igreja Católica no seu testemunho comum à mensagem do Evangelho da salvação num mundo dilacerado por conflitos e desejoso de conforto e esperança. Louvamos a Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, por ter permitido que nos reunamos na terra bíblica de Ararat, que permanece como uma memória de que Deus será para sempre a nossa proteção e salvação. Grande prazer espiritual nos dá lembrar que, em 2001, por ocasião dos 1700 anos da proclamação do cristianismo como religião da Arménia, São João Paulo II visitou a Arménia e foi testemunha duma nova página nas relações calorosas e fraternas entre a Igreja Arménia Apostólica e a Igreja Católica. Estamos gratos pela graça que tivemos de estar juntos numa solene liturgia na Basílica de São Pedro em Roma no dia 12 de abril de 2015, onde empenhamos a nossa vontade de nos opor a toda a forma de discriminação e violência, e comemoramos as vítimas daquele que a Declaração Comum de Sua Santidade João Paulo II e Sua Santidade Karekin II assinala como «o extermínio de um milhão e meio de cristãos arménios, naquele que geralmente é referido como o primeiro genocídio do século XX» (27 de setembro de 2001).
Louvamos ao Senhor por a fé cristã ser, hoje, novamente uma realidade vibrante na Arménia e por a Igreja Arménia exercer a sua missão com espírito de colaboração fraterna entre as Igrejas, sustentando os fiéis na construção dum mundo de solidariedade, justiça e paz.
Infelizmente, porém, estamos a ser testemunhas duma tragédia imensa que se desenrola diante dos nossos olhos: inúmeras pessoas inocentes que são mortas, deslocadas ou forçadas a um exílio doloroso e incerto devido a contínuos conflitos por motivos étnicos, económicos, políticos e religiosos no Médio Oriente e noutras partes do mundo. Em consequência, minorias religiosas e étnicas tornaram-se alvo de perseguição e tratamento cruel, a ponto de o sofrimento por uma crença religiosa se tornar uma realidade diária. Os mártires pertencem a todas as Igrejas e o seu sofrimento é um «ecumenismo de sangue» que transcende as divisões históricas entre os cristãos, convidando-nos a todos a promover a unidade visível dos discípulos de Cristo. Juntos rezamos, por intercessão dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, Tadeu e Bartolomeu, por uma mudança de coração em todos aqueles que cometem tais crimes e naqueles que estão em posição de acabar com a violência. Imploramos aos líderes das nações que ouçam o apelo de milhões de seres humanos que anseiam pela paz e a justiça no mundo, que pedem respeito pelos seus direitos dados por Deus, que têm necessidade urgente de pão, não de armas. Infelizmente, estamos a ser testemunhas duma apresentação fundamentalista da religião e dos valores religiosos, usando tal forma para justificar a difusão de ódio, discriminação e violência. A justificação de tais crimes com base em conceções religiosas é inaceitável, porque «Deus não é um Deus de desordem, mas de paz» (I Coríntios 14, 33). Além disso, o respeito pelas diferenças religiosas é condição necessária para a convivência pacífica de diferentes comunidades étnicas e religiosas. Precisamente por sermos cristãos, somos chamados a buscar e implementar caminhos para a reconciliação e a paz. A propósito, expressamos também a nossa esperança duma resolução pacífica das questões em torno de Nagorno-Karabakh.
Conscientes do que Jesus ensinou aos seus discípulos, quando disse: «Tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo» (Mateus 25, 35-36), pedimos aos fiéis das nossas Igrejas que abram os seus corações e mãos às vítimas da guerra e do terrorismo, aos refugiados e suas famílias. Em causa está o próprio sentido da nossa humanidade, da nossa solidariedade, compaixão e generosidade, que só pode ser devidamente expresso numa imediata partilha prática de recursos. Reconhecemos tudo o que já se está a fazer, mas insistimos que é necessário muito mais, por parte dos líderes políticos e da comunidade internacional, em ordem a garantir o direito de todos a viver em paz e segurança, para defender o estado de direito, proteger as minorias religiosas e étnicas, combater o tráfico de seres humanos e o contrabando.
A secularização de amplos setores da sociedade, a sua alienação das ligações espirituais e divinas leva inevitavelmente a uma visão dessacralizada e materialista do homem e da família humana. A este respeito, estamos preocupados com a crise da família em muitos países. A Igreja Apostólica Arménia e a Igreja Católica compartilham a mesma visão da família, fundada no matrimónio como ato de livre doação e de amor fiel entre um homem e uma mulher.
Temos o prazer de confirmar que, apesar das divisões que subsistem entre os cristãos, percebemos mais claramente que aquilo que nos une é muito mais do que aquilo que nos divide. Esta é a base sólida sobre a qual será manifestada a unidade da Igreja de Cristo, de acordo com as palavras do Senhor: «que todos sejam um só» (João 17, 21). Na últimas décadas, a relação entre a Igreja Apostólica Arménia e a Igreja Católica entrou com êxito numa nova fase, fortalecida pelas nossas orações comuns e mútuos esforços a fim de superar os desafios contemporâneos. Hoje estamos convencidos da importância crucial de avançar nesta relação, promovendo uma colaboração mais profunda e decisiva, não somente na área da teologia, mas também na oração e na cooperação activa no nível das comunidades locais, com o objetivo de compartilhar a comunhão plena e expressões concretas de unidade. Exortamos os nossos fiéis a trabalhar harmoniosamente pela promoção na sociedade dos valores cristãos que contribuam efetivamente para construir uma civilização de justiça, paz e solidariedade humana. Diante de nós está a senda da reconciliação e da fraternidade. Possa o Espírito Santo, que nos guia para a verdade completa (cf. João 16, 13), sustentar todo o esforço genuíno por construir pontes de amor e comunhão entre nós.
Da Santa Etchmiadzin, apelamos a todos os nossos fiéis para se juntarem a nós nesta oração feita com as palavras de São Nerses o Gracioso: «Glorioso Senhor, aceitai as súplicas dos vossos servos e, graciosamente, atendei os nossos pedidos, pela intercessão da Santa Mãe de Deus, João Batista, o primeiro mártir Santo Estêvão, São Gregório nosso Iluminador, os Santos Apóstolos, Profetas, Teólogos, Mártires, Patriarcas, Eremitas, Virgens e todos os vossos Santos no céu e na terra. E a Vós, Santa e Indivisível Trindade, seja glória e adoração por todo o sempre. Ámen».

Santa Etchmiadzin, 26 de junho de 2016

                        Sua Santidade Francisco                                      Sua Santidade Kareklin II

Fonte: www.vatican.va

21/06/2016

Abre-se por estes dias o Concílio pan-ortodoxo: façamos o ponto da situação

Está a decorrer de 18 a 26 de junho em Creta o Concílio pan-ortodoxo, ensombrado pela decisão de algumas igrejas não se fazerem presentes. Deixamos em tradução portuguesa o texto disponibilizado pela rubrica «Finestra ecumenica» do Mosteiro de Bose (Itália) que permite perceber a evolução dos acontecimentos nas últimas semanas. Para um melhor conhecimento da preparação do concílio remetemos para um outro texto da mesma rubrica que anteriormente traduzimos.


Como anunciamos no primeiro número desta «Finestra ecumenica», abriu-se por estes dias o «santo e grande concílio da Igreja ortodoxa», acontecimento histórico em preparação há mais de 50 anos e a primeira convocação conciliar respeitante a toda a Igreja ortodoxa desde há cerca de 1200 anos.
Como notávamos, após a sua convocação em janeiro de 2016, com o consenso de todas as igrejas ortodoxas (convocação formalizada pela encíclica do patriarca ecuménico saída a 20 de março de 2016), os documentos conciliares preparatórios sobre seis assuntos na agenda [documentos traduzidos em italiano] começaram a circular nas várias igrejas, suscitando várias discussões e reações. Discussões muito construtivas, através da organização de numerosos congressos de estudo e fóruns de confronto, mas também, muito depressa, discussões acesas e polémicas, no contexto das franjas mais conservadoras presentes em cada igreja ortodoxa, que fizeram sentir cada vez mais a sua voz (também através de um hábil uso dos meios de comunicação social).
Durante alguns meses, contudo, a situação permaneceu substancialmente circunscrita: as discussões e as polémicas, com efeito, não superaram as fronteiras de cada igreja nacional, nem pareciam colocar em dúvida a decisão comum da convocação conciliar. Um problema à parte era representado pelo complexo contencioso canónico (em curso já há anos) entre o Patriarcado de Antioquia e o Patriarcado de Jerusalém pela jurisdição do Qatar: apesar desta tensão se manter inalterada, parecia também perfilar-se, com a mediação das outras igrejas e em particular do Patriarcado ecuménico, a possibilidade de um “congelamento” temporário desta questão que permitisse pelo menos a celebração do concílio, na esperança de que o problema, concluída a assembleia, pudesse ser resolvido de modo definitivo.
De modo imprevisto e, para um observador externo, um tanto inexplicável, a situação precipitou-se no fim do mês de maio e as polémicas em torno dos documentos começaram a assumir tons cada vez mais dramáticos. «Os metros finais da maratona pré-conciliar – disse com eficácia um comentador –, que as igrejas ortodoxas percorreram durante mais de cinquenta anos, transformaram-se num drama intenso. Quando a corrida se torna um sprint há a possibilidade dos corredores colapsarem imediatamente antes da linha de chegada ou decidirem regressar à posição a partir da qual se iniciara a corrida».
Mas o que é que aconteceu?
Prescindamos de elencar as polémicas particulares, mesmo aquelas que tiveram muitos ecos nos meios de comunicação social, mas que de facto não contradisseram na substância a obediência à vontade de uma participação comum no concílio (por ex., os pronunciamentos de alguns metropolitas do sínodo da Grécia e da sinaxe extraordinária dos hegúmenos do Monte Atos).
Os acontecimentos mais preocupantes iniciaram-se a 1 de junho, quando o Sínodo da Igreja da Bulgária pediu formalmente o adiamento do concílio, fazendo saber que não participaria na assembleia na data fixada. O motivo? A ausência da agenda do concílio de temas considerados essenciais, a falta de consenso acerca de alguns documentos (a alusão dirige-se sobretudo, ainda que não exclusivamente, ao documento sobre «As relações da Igreja ortodoxa com o resto mundo cristão») e o regulamento do concílio considerado demasiado vinculante e pouco «sinodal», juntamente a outras objeções de ordem menor.
Nos dias sucessivos seguiram-se declarações substancialmente semelhantes por parte dos sínodos das igrejas da Geórgia e da Sérvia que pediam igualmente o adiamento do concílio (esta última sem renunciar a tomar parte).
Entretanto o Sínodo do Patriarcado de Antioquia, considerando que não havia margem para uma solução da sua pendência canónica e, portanto, para restabelecer a comunhão eucarística com a Igreja de Jerusalém, declarou que não podia participar no concílio. Note-se, porém, que a posição da Igreja de Antioquia não se assemelha à das outras igrejas contrárias ao concílio: enquanto estas últimas (dizemo-lo de modo um pouco superficial) temem que do concílio possam emergir novidades e mudanças inaceitáveis, a Igreja de Antioquia é conhecida há muito pelas suas posições avançadas, tanto sobre o tema do diálogo ecuménico e inter-religioso, como sobre o dos direitos humanos e, em geral, da relação com a sociedade contemporânea.
Neste contexto extremamente tenso, a posição do Patriarcado de Moscovo permaneceu incerta até ao último momento. Num primeiro momento o seu sínodo pediu formalmente ao Patriarcado ecuménico que convocasse com urgência uma sinaxe inter-ortodoxa, antes de 10 de junho, com o objetivo de encontrar uma convergência com as igrejas que tinham manifestado a própria contrariedade; convergência considerada indispensável para o desenvolvimento do concílio.
O Patriarcado ecuménico, depois de uma sessão extraordinária do seu sínodo permanente, a 6 de junho, manifestando surpresa pelas posições das igrejas irmãs, respondeu que «não subsiste nenhum quadro normativo para uma revisão do procedimento sinodal iniciado».
Constantinopla declara assim que não tem competências suficientes para interromper o processo sinodal iniciado por vontade comum de todas as igrejas ortodoxas: o Patriarca ecuménico não tem poder de tomar decisões unilaterais (apesar das acusações de «papismo» que alguns lhe dirigem, o seu papel na Igreja ortodoxa não é comparável ao do papa na Igreja católica).
Estando assim as coisas, o Sínodo do Patriarcado de Moscovo, a 13 de junho, também pediu por via oficial o protelamento do concílio, constatando a impossibilidade de se alcançarem posições convergentes e a defeção de numerosas igrejas ortodoxas: o concílio – diz-se – deve exprimir a unidade pan-ortodoxa e não admite divisões; se há divisões, quer dizer que o concílio é prematuro e é necessário prolongar o período preparatório. Além disso, Moscovo levanta reservas ao sistema representativo adotado e deseja que o futuro concílio conte com a participação de todo o corpo episcopal da Igreja ortodoxa e não apenas de uma parte dele.
A unidade ortodoxa nesta altura parece ameaçada e muitos perguntam-se pelo que pode acontecer. O concílio é ainda realístico nestas condições? Os seus defensores insistem em repetir com convicção que o único espaço em que a unidade poder ser procurada e alcançada é precisamente o concílio. Não há outros. Como diz um pronunciamento da Igreja da Albânia: «É evidente que os problemas são tantos. Exatamente por isso deve celebrar-se o grande e santo sínodo. É impossível resolver todos os problemas, mas pelo menos alguns serão enfrentados. Pouco é melhor do que nada… O adiamento ferirá profundamente a autoridade internacional da Igreja ortodoxa». Além disso, a unidade não deve ser considerada como um pressuposto de partida, mas como uma meta para que tender: os concílios fazem-se, sempre se fizeram para procurar a unidade, não apenas para manifestar a unidade já existente. As divisões existentes não são subvalorizadas, nem tampouco exageradas.
Mas surge espontânea uma pergunta: dada a não participação de algumas igrejas, que valor canónico/normativo poderá ter este concílio? Continuará a ser um concílio “pan-ortodoxo”, mesmo sem a participação de todos?
O Patriarcado de Moscovo e as outras igrejas que partilham das suas posições afirmam que a validade do concílio está ligada à participação de todas as igrejas (a ideia deriva do princípio de unanimidade que o regulamento prevê como condição para a aprovação de todas as decisões conciliares) e que, portanto, as decisões tomadas por um concílio em que algumas igrejas estão ausentes simplesmente não têm valor.
O Patriarcado de Constantinopla, por seu lado, faz notar que o concílio foi querido e convocado unanimemente pelos primazes de todas as igrejas ortodoxas reunidos numa sinaxe em Genebra em janeiro deste ano, e que permanece como tal válido e “pan-ortodoxo”, e assim serão as suas decisões, mesmo se – graças à sua escolha – algumas das igrejas convocadas não estão presentes. As igrejas ausentes, na medida em que se abstêm de participar no concílio e de fazer ouvir a própria voz, não podem constituir um veto a respeito das decisões conciliares. De resto – note-se ainda – nos grandes concílios ecuménicos do passado também nunca estiveram representadas todas as igrejas da cristandade. Em todo o caso, a verdadeira história eclesial de um concílio começa sempre a partir do momento da sua conclusão: o modo como este concílio será considerado dependerá da receção que terá na consciência e na vida eclesial de toda a ortodoxia. Ninguém pode dizê-lo antecipadamente.
Há poucos dias, a 11 de junho, um grupo de mais de mil intelectuais ortodoxos lançaram um apelo extremo à unidade, enviando aos chefes de todas as igrejas ortodoxas uma carta aberta pela qual se pede que se avance no caminho conciliar: «Enquanto os olhos do mundo inteiro estão voltados para a Igreja ortodoxa, nós suplicamos a todos os nossos chefes que escutem o apelo do Espírito à unidade conciliar».
Mas um leitor ingénuo, neste momento, poderia avançar com uma pergunta simples: porque toda esta situação? Porque é que um concílio, que por definição procura a unidade (o seu mote é: «Chamei todos à unidade»), suscita tantas divisões?
Não nos compete aqui, como fizeram outros nestes dias nos meios de comunicação social, arriscar juízos ou tentar leituras históricas e políticas (ou até geopolíticas) para explicar os mecanismos difíceis que conduziram a esta situação complexa, nem avançar hipóteses prematuras sobre o modo como o concílio poderá ser uma ocasião de paz e de unidade, e não de ulterior divisão.
O Patriarca Kirill, numa carta enviada aos chefes das igrejas reunidas em Creta, deseja: «Não nos perturbe o facto da disparidade de opiniões das igrejas irmãs acerca da convocação do Santo e Grande Concílio… Não podemos permitir-nos que elas enfraqueçam a unidade querida por Deus, nem que as deixemos degenerar num conflito intraeclesial que introduza a divisão e a perturbação entre nós».
Queremos fazer nossas também as palavras sábias e equilibradas do arquidiácono do Trono Ecuménico John Chryssaygis: «Quando os membros de uma família ficaram isolados durante um tempo longo – no caso das igrejas ortodoxas autocéfalas, durante séculos – é natural que o medo e a incerteza ensombrem a possibilidade de conversação»; mas isto, sob outro ponto de vista, constitui também «a grandeza e beleza deste acontecimento. É como quando observamos alguém que dá os primeiros passos: podemos sorrir pelo embaraço, mas continuamos a admirar a coragem e a determinação do seu esforço».
Não devemos, pois, só abstermo-nos de julgar, mas o nosso olhar tem de poder transformar-se de olhar de juízo em olhar de admiração sincera, porque todo o esforço que os nossos irmãos ortodoxos estão a fazer não é mais do que «o esforço da caridade» (κόπος της αγάπης 1 Ts 1, 3), de que fala o apóstolo. E a caridade tem sempre um alto preço. 
O concílio de Creta é, pois, uma ocasião preciosa, um autêntico καιρός, ainda que seja talvez apenas o primeiro passo de um longo processo conciliar (de resto nos concílios antigos não era normal que um único acontecimento conciliar se desenvolvesse em mais sessões sucessivas? Não aconteceu também assim no Vaticano II e em tantos outros concílios ocidentais?). Para além das decisões que forem tomadas e dos documentos que forem aprovados, será importante o concílio enquanto tal, e será verdadeiramente «grande e santo» na medida em que se tornar uma ocasião de comunhão, uma ocasião para «olhar na cara» e «deixar desarmar» (para usar duas expressões caras ao Patriarca Atenágoras) um acontecimento que, «fugindo da mão» (por assim dizer) de cada autor humano, deixará espaço ao Deus da paz e da comunhão.
Neste Espírito, consideramos que a única atitude justa e evangélica para os cristãos que olham do exterior (mas com íntima comparticipação) para este acontecimento é a de uma proximidade fraterna que, abstendo-se de qualquer juízo, se traduza numa oração intensa e convicta, na consciência de que o que aqui está em jogo supera a todos. O concílio é o espaço propenso para que o Espírito possa soprar; não é só obra humana, mas está nas mãos de Deus. Repitamos com o salmista: «É tempo de agires, Senhor!» (Sl 110, 126).
Convidamos todos os que no seguem, portanto, a unirem-se à nossa oração para que o Senhor faça descer o seu Espírito, dissolva cada dureza, concilie as divisões, crie caminhos de unidade, para que todas tenham a disponibilidade para «escutar o que o Espírito diz às igrejas» (Ap 2, 7).

04/06/2016

Olhar sobre Lutero na véspera do V centenário da Reforma: Uma perspetiva ecuménica

Em 2017 celebram-se os 500 anos da Reforma protestante. Essa remonta a 1517, desencadeada pela publicação das 95 teses de Lutero sobre as indulgências. As celebrações dos 500 anos abrir-se-ão concretamente em 31 de outubro de 2016, em Lund, na Suécia. O papa Francisco já anunciou a sua presença nesta jornada, ao lado do bispo Munib Younan, presidente da Federação Luterana Mundial, do arcebispo de Uppsala Antje Jackelén e do bispo católico de Estocolmo Anders Arborelius. Para ajudar à preparação do cinquentenário da Reforma protestante, na expectativa de que contribua para o percurso ecuménico, deixamos um interessante texto do cardeal Walter Kasper sobre Lutero em perspetiva ecuménica publicado precisamente no contexto do V centenário da Reforma.

Lutero não era um homem ecuménico no sentido moderno deste termo. Mas também não o eram os seus adversários. Ambos viviam propensos à polémica e à controvérsia. Isto levou a restrições e rigores de ambas as partes. As questões exacerbaram-se imediatamente, desde a questão da justiça revelada no Evangelho e da misericórdia de Deus, até à questão da Igreja, especialmente à questão do Papa. Dado que o Papa e os bispos se recusam a anuir à reforma, Lutero, assente na sua compreensão do sacerdócio universal, teve que se contentar com um ordenamento de emergência. No entanto, ele continuou a confiar que a verdade do Evangelho se teria imposto sozinha e assim, fundamentalmente, deixou a porta aberta para um possível entendimento futuro.
No início do século XVI, muitas portas permaneciam abertas inclusive da parte católica. Não havia uma eclesiologia católica harmonicamente estruturada, mas apenas aproximações, que eram mais uma doutrina sobre a hierarquia do que autêntica eclesiologia. A elaboração sistemática da eclesiologia só ocorrerá na teologia das controvérsias, como antítese da polémica da Reforma contra o Papado. Assim o Papado tornou-se, de um modo até então desconhecido, a marca de identidade do catolicismo. As respetivas teses e antíteses confessionais condicionaram-se e opuseram-se umas às outras.
Somente o ecumenismo recente voltou a abrir um pouco mais a porta. O lugar da controvérsia passou a ser ocupado pelo diálogo. Diálogo não significa abandonar aquilo que até então se julgava verdade. Só podem empreender um diálogo autêntico pessoas que, não obstante cada qual tenha o seu ponto de vista, estejam dispostas a ouvir-se reciprocamente e a aprender umas das outras. Tal diálogo não é uma questão puramente intelectual, mas um intercâmbio de dons. Isto pressupõe que se reconheça quer a verdade do outro, quer as próprias debilidades, e a vontade de afirmar cada qual a sua verdade, de maneira a não ferir o próximo, sem polémicas, mas dizendo a verdade no amor (cf. Ef 4, 15), eliminado das controvérsias o veneno da divisão e transformando-as numa dádiva, de forma que ambas as partes cresçam na catolicidade entendida no seu sentido originário, progridam juntas e reconheçam em maior medida a misericórdia de Deus em Jesus Cristo, dando-lhe um testemunho comum perante o mundo.
Foi este o caminho percorrido desde o último Concílio, que portanto traçou uma senda que não pode ser invertida – uma vereda, não uma solução já pronta! O acolhimento do Concílio Vaticano II, até cinquenta anos depois do seu encerramento, ainda não chegou ao fim. O Papa Francisco inaugurou uma nova fase neste processo de adaptação. Ele sublinha a eclesiologia do povo de Deus, o povo de Deus a caminho, o sentido da fé do povo de Deus, a estrutura sinodal da Igreja e, visando a compreensão da unidade, põe em jogo uma abordagem nova e interessante. Descreve a unidade no ecumenismo não já como a imagem dos círculos concêntricos, em volta do fulcro romano, mas mediante a imagem do poliedro, ou seja, de uma realidade multifacetada, não um mosaico composto a partir de fora, mas um conjunto e, se se trata de uma pedra preciosa, um conjunto que reflete a luz que o ilumina de maneira maravilhosamente múltipla. Inspirando-se em Oscar Cullmann, o Papa Francisco retoma o conceito da diversidade reconciliada. Na exortação apostólica Evangelii gaudium, o seu «escrito programático», ele começa a partir do Evangelho e convida a uma conversão não somente cada indivíduo cristão, mas também do episcopado e do primado. Assim, subentende-se, põem-se no centro a exigência fundamental de Lutero, ou seja, o Evangelho da graça e da misericórdia, e o apelo à conversão e à renovação.
Não só a história do acolhimento do último Concílio, mas também a história da aceitação de Lutero, não está de modo algum no fim, nem sequer nas Igrejas evangélicas. Há também um esquecimento e um desinteresse por Lutero da parte evangélica. Pensemos na doutrina relativa à Ceia e à piedade eucarística. Ela demonstra que, contra Zwingli, Lutero permaneceu decididamente fiel a uma compreensão realista da Eucaristia e que não pode ficar bloqueada de modo rígido no esquema de uma religião da mera interioridade. Além disso, pensemos na compreensão do ministério do Lutero da maturidade, na sua abertura fundamental em relação ao episcopado histórico, assim como na sua afirmação de que ele teria levado na palma da mão e beijado os pés de um Papa que tivesse acolhido e reconhecido o seu Evangelho. Por isso, não é possível referir-se unicamente às afirmações polémicas do primeiro Lutero. Pelo contrário, devemos e podemos retomar novamente também a questão, fundamental para o progresso do ecumenismo, da compreensão e da relação entre Igreja, ministério e Eucaristia.
A este propósito, levar a sério os aspetos místicos de Lutero poderia ajudar a dar um passo em frente. Eles não se encontram somente no jovem Lutero, mas inclusive no mais simpático dos seus importantes escritos reformadores, Von der Freiheit eines Christenmenschen. Isto poderia abrir a possibilidade de diálogo. Com efeito, unidade e reconciliação não se verificam unicamente no cérebro, mas em primeiro lugar nos corações, na piedade pessoal, na vida de todos os dias e no encontro entre pessoas.
Digo-o com palavras mais académicas: temos necessidade de um ecumenismo acolhedor, capaz de nos levar a aprender uns com os outros. Só através dele a Igreja católica poderá realizar concreta e plenamente a sua catolicidade; vice-versa, também a instância originária de Lutero, no fundo exigência ecuménica, só poderá encontrar plena satisfação mediante um ecumenismo acolhedor. Ainda não dispomos de uma solução conjunta, mas abrem-se uma possível perspetiva e um caminho comum para o futuro. Por muito que ela possa parecer longa e cheia de obstáculos, a senda rumo à plena unidade está aberta.
A contribuição mais importante de Martinho Lutero para fazer progredir o ecumenismo não esta nas abordagens eclesiológicas que nele ainda permanecem abertas, mas na sua orientação originária para o Evangelho da graça e da misericórdia de Deus, e no seu apelo à conversão. A mensagem da misericórdia de Deus era a resposta aos seus problemas e necessidades pessoais, assim como às interrogações da sua época; e ainda hoje é a resposta aos sinais dos tempos e às questões urgentes de muitas pessoas. Só a misericórdia de Deus pode curar as profundas feridas que a divisão infligiu ao Corpo de Cristo, que é a Igreja. Ela pode transformar e renovar os nossos corações, a fim de nos tornarmos dispostos à conversão, a sermos misericordiosos uns com os outros, a perdoar-nos reciprocamente as injustiças do passado, a reconciliar-nos e a pôr-nos a caminho para nos encontrarmos de novo unidos, com paciência, passo a passo, na vereda rumo à unidade na diversidade reconciliada.
Neste sentido, gostaria de citar uma frase atribuída a Martinho Lutero. Como o dito sobre o Anticristo, também ele se insere numa perspetiva escatológica, mas é mais serena, mais suave e orientada para a esperança. «Mesmo se eu soubesse que o mundo acabará amanhã, eu plantaria uma macieira no meu pomar». No dia 1 de novembro de 2009 pude plantar uma pequena tília no jardim reconstituído de Lutero em Wittenberg; retribuindo o dom, sob o meu sucessor os luteranos plantaram uma oliveira na basílica romana de São Paulo fora dos muros.
Quem planta uma pequena árvore nutre esperança, mas também precisa de paciência. Em primeiro lugar, a pequena planta deve crescer em profundidade, lançar raízes profundas para poder resistir às adversidades do tempo. Também nós devemos ir ad fontes e ad radices. Temos necessidade de um ecumenismo espiritual na comum leitura da Escritura e na oração conjunta. Em segundo lugar, a pequena árvore deve crescer em altura, elevando-se rumo ao céu e à luz. Não podemos «produzir» o ecumenismo, não o podemos organizar, nem sequer pretender com a força. A unidade é um dom do Espírito Santo de Deus. Não podemos ter uma estima escassa pelo seu poder, não nos podemos render de modo apressado, não podemos perder a esperança prematuramente. O Espírito de Deus, que começou a obra da unidade, também a levará ao seu cumprimento, uma unidade não como nós a queremos, mas como Ele a deseja.
Enfim, a pequena árvore deve tornar-se frondosa, a fim de que os pássaros do céu possam construir o ninho nos seus ramos (cf. Mt 13, 32), ou seja, para todos os cristãos de boa vontade encontrem um lugar à sua sombra. Em conformidade com a imagem do poliedro, devemos permitir a unidade numa grande multiplicidade reconciliada, permanecer abertos a todas as pessoas de boa vontade e dar já hoje um testemunho comum de Deus e da sua misericórdia.
Hoje a unidade está mais próxima do que estava há quinhentos anos. Ela já começou. Em 2017 já não estamos, como em 1517, no caminho da separação, mas da unidade. Se tivermos coragem e paciência, no fim não ficaremos desiludidos. Esfregaremos os olhos e, com gratidão, ficaremos surpreendidos com aquilo que o Espírito de Deus nos concedeu, talvez de um modo totalmente diferente do que imaginávamos. Nesta perspetiva ecuménica, o ano de 2017 poderia ser uma oportunidade para os cristãos, quer evangélicos quer católicos. Devemos saber valorizá-la: seria um bem para ambas as Igrejas, para numerosas pessoas que alimentam expectativas a tal propósito e também para o mundo que, sobretudo hoje, tem necessidade do nosso testemunho comum.

Walter Kasper

Do prólogo de Walter KASPER, Martin Lutero. Una prospettiva ecumenica (= Giornale di teologia 387) Brescia: Queriniana, 2016.

Publicado em L’osservatore romano. Edição semanal em Português (26.5.2016) 10-11.