17/10/2022

O ecumenismo depois de Karlsruhe

O
Segretariato Attività Ecumeniche (Itália) organizou em 29 de setembro passado um webinar dedicado à Assembleia do Conselho Ecuménico das Igrejas (CEI) realizada em Karlsruhe, na Alemanha, de 31 de agosto a 8 de setembro. Moderado pelo teólogo Simone Morandini, contou com as intervenções do pastor valdense Michel Charbonier e do monge da Comunidade Ecuménica de Bose Guido Dotti, estes últimos participantes diretos na assembleia.


Simone Morandini salientou o carácter especial da Assembleia Ecuménica de Karlsruhe, tendo em conta o momento dramático em que teve lugar, precisamente no continente europeu. De facto, confrontou-se com os desafios da guerra, as alterações climáticas e as tensões nas relações entre as confissões cristãs.
Karlsrue foi um momento significativo para compreender em que direção avança o ecumenismo e o diálogo na comunhão eclesial.
Seguem-se algumas passagens das intervenções de de Michel Charbonnier, membro reeleito do Comité Central do CEI, e de Guido Dotti, colaborador do CEI.

Cristianismo das diferenças


Michel Charbonnier começou por referir as sensações produzidas pela beleza das celebrações litúrgicas, em particular os cânticos que remetem imediatamente para a polifonia do encontro entre as diferentes Igrejas.
Um aspeto que nos impressiona sempre, ao participar na Assembleia, é uma sensação inesperada de proximidade e boa vontade entre todos os participantes.
Claro que existem diferenças: culturais, éticas e teológicas, muitas vezes difíceis de compreender e de aceitar. Mas as crises mundiais mais urgentes – especialmente a crise climática – ajudaram a "limar as arestas" para chegar às convergências da Assembleia.
Karlsruhe testemunhou um mundo a tentar falar entre si e a tentar fazê-lo – mesmo que nem sempre se consiga – de uma forma inclusiva. Além disso, falar com quatro mil pessoas presentes não foi fácil.

Demasiada cautela?


Como delegado, Charbonnier viu todos os limites organizativos do evento.
As manhãs foram dedicadas a sessões plenárias temáticas, frequentemente com sessões bastante "espetaculares", em que foram acolhidas figuras ecuménicas de prestígio, ou entoados cânticos, mostrados vídeos, etc.: tudo coisas boas, que, no entanto, retiraram tempo à discussão dos documentos e à tomada de decisões.
Aos delegados eram dadas pouco menos de três horas por dia para desempenharem uma tarefa tão exigente. Esta é uma das razões – não secundária  pela qual saímos da Assembleia com grande cautela  talvez demasiada  no que diz respeito aos temas mais importantes, especialmente a guerra entre a Rússia e a Ucrânia ou o eterno conflito israelo-palestiniano.
O texto sobre a Ucrânia seguiu basicamente a linha do Comité Central da CEI realizado anteriormente em Assis. Não há dúvida de que isto levou a um "fogo cruzado" entre os membros ucranianos e os russos da Assembleia, tendo estes últimos criticado fortemente o documento porque, na sua opinião, era fruto da desinformação ucraniana.
Sobre o Médio Oriente, o debate cristalizou-se no uso do termo apartheid em relação à política israelita face aos palestinianos: no essencial, o texto limitou-se a propor que o comité central estudasse com a Amnistia Internacional e com outras associações a legitimidade do uso da expressão.

Ecologia e paz


A Declaração sobre Justiça Climática constitui um forte alerta para o desastre ecológico em curso e convida as Igrejas a ações urgentes junto dos respetivos governos, propondo, por exemplo, uma taxação elevada dos grandes patrimónios. O documento adverte para o risco de que a tão apregoada transição ecológica resulte em mais uma exploração do chamado Terceiro ou Quarto Mundo, onde se encontram os principais recursos necessários para a chamada economia verde.
O documento sobre a paz é, segundo Chabonnier, o mais detalhado, pois vai ao ponto de denunciar a responsabilidade da indústria do armamento que continua a alimentar os conflitos mundiais, denunciando, em termos inequívocos, o risco nuclear: algo que já não acontecia há muito tempo!
Charbonnier não esconde a atual fraqueza do CEI e uma certa "incoerência sistémica", infelizmente atribuível à influência de elementos externos, políticos: emblemática, neste sentido, foi a intervenção do representante de Religions for peace, que convidou a Assembleia a voltar a ser uma consciência crítica e profética do nosso mundo, em vez de "ter a sua agenda ditada" pelos governos.
Apesar das debilidades, das dificuldades e mesmo das incoerências, o CEI continua a ser um instrumento precioso da relação entre as Igrejas cristãs e do diálogo entre estas e as outras religiões.

Tensões não superadas


Como tinha sido previsto por Simone Morandini, o webinar prestou especial atenção a quanto, na Assembleia do CEI de Karlsruhe, foi muitas vezes gasto no que se refere à guerra na Ucrânia. Charbonnier, como membro do comité central, falou da hipótese, efetivamente posta em circulação, da expulsão da Igreja Ortodoxa Russa.
A posição defendida na discussão reafirmou, contudo, que a tarefa do Conselho Ecuménico não é a de remover problemas com exclusões, mas a de se encarregar deles, criando um espaço de diálogo persistente e sem julgamentos.
O Conselho, na circunstância, não se mostrou, contudo, capaz de suster adequadamente a tensão entre os dois polos  russo e ucraniano  nem de ser um lugar de diálogo efetivo e de parrhesía extrema. Os representantes da Igreja Ortodoxa Russa tinham lamentado em junho que o Concílio Ecuménico estivesse à mercê da propaganda pró-ucraniana.
Em Karlsruhe lamentaram a mesma coisa. Mas, entretanto, nada fizeram para trazer à discussão as questões no seio do CEI. Isto ficou, por isso, totalmente em falta. Resta a confiança de que o que faltou possa ser recuperado durante o próximo mandato.

Moscovo na defensiva


Guido Dotti confirmou as atitudes particularmente fechadas e defensivas do Patriarcado de Moscovo. Mas salientou que não se deve subestimar o facto de as "novas" Igrejas Ortodoxas na Ucrânia  a que ainda está em comunhão com o Patriarca de Moscovo e a autocéfala vinculada a Constantinopla  terem pedido para aderir ao CEI. Isto criar-lhes-á inevitavelmente problemas com o Patriarcado de Moscovo.
A primeira já era de facto membro do Conselho, embora nunca tenha participado nas reuniões; enquanto, para a segunda, a aceitação pelo Conselho significará o pleno reconhecimento da autocefalia.
Assim, os representantes das duas Igrejas ucranianas, em vez de se culparem mutuamente pelo que correu mal entre elas, preferiram colocar em primeiro lugar o interesse humanitário comum face à tragédia da guerra.
São bem conhecidos  já antes e independentemente da guerra  episódios de abuso de poder de uns contra os outros e vice-versa: agora salientam a própria vontade de cuidar dos fiéis ucranianos em conjunto, em vez de procurarem culpas e responsabilidades.
Pode tratar-se, indubitavelmente, de uma posição pouco mais do que diplomática, mas o facto de ter sido manifestada diante de todas as Igrejas, numa modalidade "não beligerante", é extremamente positivo.

Andrea Cappelletti
Settimana news (16 de outubro de 2022)

31/08/2022

XI Assembleia do Conselho Ecuménico das Igrejas

Começam hoje e prolongam-se até 8 de setembro, em Karlsruhe, os trabalhos da XI Assembleia do Conselho Ecuménico Mundial das Igrejas (CEI) sobre o tema «O amor de Cristo impele o mundo à reconciliação e à unidade».
A Assembleia representa o mais alto nível de governo do CEI. Reunida de oito em oito anos, teve de ser adiada um ano devido à pandemia, que tornou praticamente impossível a celebração na data prevista, em 2021.
Participam na Assembleia 800 delegados das Igrejas cristãs que fazem parte do CEI, bem como a representação da Igreja Católica liderada por Card. Koch - que não é membro do CEI, mas colabora com ele enquanto parceiro.
É esperado o discurso do presidente federal alemão Steinmaier que abrirá oficialmente os trabalhos da Assembleia.
Será também um teste à capacidade de resistência das relações ecuménicas entre as Igrejas, numa altura em que algumas delas estão diretamente envolvidas em guerras e situações de conflito - estarão presentes em Karlsruhe representantes das Igrejas ucranianas, bem como da Igreja Ortodoxa Russa.
Por norma, a Assembleia trabalha temas e questões em torno das quais se deve empenhar a ecumenê das Igrejas nos anos que se seguem à sua celebração. Nunca como nesta Assembleia a fronteira entre questões teológico-eclesiais e sociopolíticas foi tão ténue e permeável.
Das migrações às guerras, da crise económica à preservação do ambiente, da justiça social aos direitos humanos - todas estas são brechas que atravessam os corpos das Igrejas cristãs e impõem a originalidade de uma resposta que vem da luz do Evangelho e das práticas de fé.
Em particular, a questão ecológica e ambiental está no centro das atenções e das preocupações: «Se não mudarmos o nosso modo de viver, o nosso planeta será inabitável dentro de cinquenta anos. A preservação da natureza é uma questão teológica. Os cristãos e cristãs têm de se empenhar na regeneração de toda a criação», recordou Ioan Sauca, Secretário-Geral interino do CEI.
O seu mandato foi prolongado até dezembro de 2022, para garantir a continuidade das atividades do CEI em ordem à XI Assembleia. Em 2023, assumirá o cargo o sul-africano Jerry Pillay, que foi eleito para lhe suceder.

Marcello Neri
Settimana News (31 de agosto de 2022)

26/08/2022

Tempo da Criação 2022

Todos os anos, de 1 de setembro a 4 de outubro, a família cristã une-se para a celebração mundial de oração e ação pela proteção da nossa casa comum. Como seguidoras e seguidores de Cristo de todo o mundo, compartilhamos um apelo comum a cuidar da criação. Somos cocriaturas e fazemos parte de tudo o que Deus fez. O nosso bem-estar está entrelaçado com o bem-estar da Terra. Alegramo-nos com esta oportunidade de salvaguardar a nossa casa comum e todos os seres que a compartilham connosco. Este ano, o tema deste Tempo é «Escutar a Voz da Criação».

Convite dos líderes religiosos à participação no Tempo da Criação


Caríssimas Irmãs e Irmãos em Cristo,
O Tempo da Criação é a celebração cristã anual para escutarmos e respondermos conjuntamente ao grito da Criação: a família ecuménica em todo o mundo une-se para rezar e proteger a nossa casa comum.
A "Celebração" começa a 1 de setembro, o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação, e termina a 4 de outubro, Festa de São Francisco de Assis, o santo padroeiro da ecologia, amado por muitas denominações cristãs.
Este ano vamos unir-nos em torno do tema: «Escutar a Voz da Criação».
O salmista declara: «Os céus declaram a glória de Deus; o firmamento proclama a obra das suas mãos. Um dia fala disso ao outro dia; uma noite revela-o à outra noite.... não se ouve a sua voz. Mas a sua voz ressoa por toda a terra, e as suas palavras até os confins do mundo». (19, 1-4)
Durante o Tempo da Criação, a nossa oração e ação comum podem ajudar-nos a escutar as vozes que são silenciadas. Na oração, lamentamos cada pessoa em particular, comunidades, espécies e ecossistemas que estão perdidas/os, e aquelas/es cujo sustento está ameaçado pela perda do habitat e pelas mudanças climáticas. Na oração, colocamos no centro o grito da Terra e o grito dos pobres.
Que este Tempo da Criação de 2022 possa renovar a nossa unidade ecuménica, renovando e unindo-nos pelo nosso vínculo de Paz num mesmo Espírito, no nosso apelo a cuidar da nossa casa comum. E que este tempo de oração e ação seja um tempo para escutar a Voz da Criação, para que as nossas vidas em palavras e atos proclamem boas novas para toda a Terra.
Na graça de Deus,

Membros do Comitê Consultivo do Tempo da Criação

O tema de 2022: «Escutar a Voz da Criação»


Durante a pandemia da COVID-19, muitas/os de nós familiarizamo-nos com o conceito de sermos silenciadas/os durante as conversas virtuais. Com frequência as pessoas usam plataformas que não dão a opção de sair do silêncio. Ainda mais, nem sequer têm acesso às plataformas digitais, e por isso as suas vozes nunca são escutadas. Muitas vozes são silenciadas no discurso público sobre as mudanças climáticas e a ética do cuidado da Terra. Estas são as vozes daquelas/es que sofrem os impactos da mudança climática. Estas são as vozes daquelas/es que possuem sabedoria geracional sobre como viver com gratidão dentro dos limites da terra. Estas são as vozes de uma diversidade cada vez menor de espécies mais do que humanas, é a voz da Terra. O tema do Tempo da Criação de 2022 desperta a consciência da nossa necessidade de escutar a voz de toda a criação.
O salmista (19,1-4) reconhece que escutar a voz da criação requer um tipo de escuta que é cada vez mais raro. Dentro da família cristã ecuménica, existe uma gama diversificada de tradições para nos ajudar a recuperar a nossa capacidade de escutar a voz da criação. Alguns dos primeiros escritos cristãos referem-se ao conceito da criação como um livro a partir do qual o conhecimento de Deus pode ser lido. A tradição teológica do livro da criação corre como um fio de ouro dos escritos de Orígenes através dos escritores da época da Patrística como Tertuliano, Basílio de Cesareia e outros. Como o salmista, São Máximo lembra-nos que todo o cosmos louva e glorifica a Deus «com vozes silenciosas», e que o louvor não é escutado até que lhe demos voz, até que louvemos a Deus na e com a criação. Santo Agostinho escreve: «[A Criação] é a página divina que deves escutar; é o livro do universo que deves observar. As páginas da Escritura só podem ser lidas por aqueles que sabem ler e escrever, enquanto todos, mesmo os analfabetos, podem ler o livro do universo». Para um sermão de Advento Martinho Lutero escreveu: «Deus escreveu [o Evangelho] não só em livros, mas também em árvores e outras criaturas».
Um "livro" ou um pergaminho era para ser lido em voz alta e, portanto, era uma palavra falada que devia ser escutada. Os pergaminhos e os livros da Escritura deveriam ser lidos em voz alta, inspirados numa comunidade e ouvidos como proclamação. O salmista que declara que a criação proclama o trabalho manual de Deus também sabe que o livro da Escritura revive perfeitamente a alma, faz sábias as pessoas simples, alegra o coração e ilumina os olhos. (Salmo 19,7-8) O livro da criação e o livro da Escritura devem ser "lidos" lado a lado.
Devemos ter cuidado para não confundir os dois livros e para não desfocar as linhas entre a razão e a revelação. Mas o que "escutamos" da criação é mais do que uma metáfora extraída da nossa compreensão da ecologia e da ciência climática. É mais do que as ciências biológicas e físicas que têm moldado o diálogo entre a teologia e as ciências naturais desde a revolução científica. Na sua encíclica sobre a Fé e a Razão, o Papa João Paulo II reconheceu que, enquanto Cristo é o coração da revelação de Deus, a criação foi a primeira etapa dessa revelação. As harmonias que emergem quando contemplamos os livros da criação e das Escrituras formam a nossa cosmologia sobre quem somos, onde estamos e como somos chamados a viver relações herminiosas com Deus e com as nossas cocriaturas.
A contemplação abre-nos a muitos modos de escutar o livro da criação. O Salmo 19 diz que as criaturas falam-nos do Criador. O equilíbrio harmonioso das ecologias biodiversas e os gritos de sofrimento da criação são ambos ecos do Divino, porque todas as criaturas têm a mesma origem e terminam em Deus. Escutar as vozes de nossas cocriaturas é como perceber a verdade, a bondade ou a beleza através da vida de um amigo humano e de um membro da família. Aprender a escutar essas vozes ajuda-nos a tomar consciência da Trindade, na qual a criação vive, se move e tem o seu ser. Jürgen Moltmann pede «um discernimento do Deus que está presente na criação, que através de seu Espírito Santo pode levar o homem e a mulher à reconciliação e à paz com a natureza".
A Tradição Cristã ajuda-nos a aprender a escutar o livro da criação. A espiritualidade cristã está repleta de práticas que levam os nossos corpos à contemplação com palavras, também com o silêncio. Tais práticas litúrgicas e espirituais são acessíveis desde a infância até à vida adulta. Cultivar uma espiritualidade de escuta ativa ajuda-nos a discernir as vozes de Deus e dos nossos vizinhos no meio do barulho de narrativas destrutivas. A contemplação move-nos do desespero à esperança, da ansiedade à ação!
Para os cristãos e cristãs, Jesus Cristo mantém juntos os dois "livros" da criação e da Escritura. Diante da realidade da rutura, do sofrimento e da morte, a encarnação e ressurreição de Cristo torna-se a esperança de reconciliar e curar a Terra. O livro da Escritura proclama a Palavra de Deus para que possamos ir ao mundo e ler o livro da criação de uma forma que antecipe este Evangelho. Por sua vez, o livro da criação ajuda-nos a escutar o livro da Escritura a partir da perspetiva de toda a criação que anseia pela boa nova. Cristo torna-se uma chave para discernir o dom e a promessa de Deus para toda a criação e particularmente para aqueles que sofrem ou que para nós já estão perdidas.
Durante o Tempo da Criação, a nossa oração e ação comum podem ajudar-nos a escutar as vozes que são silenciadas. Na oração, lamentamos pessoas em particular, comunidades, espécies e ecossistemas que estão perdidas/os, e aquelas/es cujo sustento está ameaçado pela perda do habitat e pela mudança climática. Na oração, colocamos no centro o grito da Terra e o grito dos pobres. As comunidades de fé e oração podem ampliar as vozes das pessoas jovens, dos povos indígenas, das mulheres e das comunidades afetadas que não são ouvidas na sociedade. Através de liturgias, orações públicas, atos simbólicos e de incidência pública, podemos lembrar aquelas/es que são deslocadas/os ou desapareceram dos espaços públicos e dos processos políticos.
Escutar a voz da criação oferece aos membros da família cristã um rico ponto de entrada no diálogo e na prática inter-religiosa e interdisciplinar. Os cristãos e cristãs trilham um caminho compartilhado como aqueles que possuem diferentes tipos de conhecimento e sabedoria em todas as culturas e setores da vida. Ao escutar a voz de toda a criação, a humanidade une-se na vocação de cuidar da nossa casa comum (oikos).

Oração


Criador de todas as coisas,
A partir da Tua comunhão de amor, a Tua Palavra partiu para criar uma sinfonia de vida que canta os Teus louvores.
Pela Tua Sagrada Sabedoria fizeste a Terra para trazer à tona uma diversidade de criaturas que Te glorificam no seu ser. Dia após dia proclamam; noite após noite, revelam conhecimento.
Chamaste a humanidade a cultivar e manter o Teu jardim. Colocaste-nos em relações harmoniosas com cada criatura para que pudéssemos escutar as suas vozes e aprender a salvaguardar as condições para a vida. Mas voltamo-nos só para nós mesmos.
Fechamos os nossos ouvidos aos conselhos dos nossos semelhantes. Não ouvimos os gritos das pessoas empobrecidas e as necessidades das mais vulneráveis. Silenciamos as vozes daquelas que sustentam as tradições que nos ensinam a cuidar da Terra. Fechamos os nossos ouvidos à Tua Palavra criativa, reconciliadora e sustentadora, que nos chama através das Escrituras.
Lamentamos a perda das nossas espécies semelhantes e dos seus habitats que nunca mais falarão. Lamentamos a perda de culturas humanas, juntamente com as vidas e os meios de subsistência que foram deslocados ou pereceram. A criação grita enquanto as florestas crepitam e os animais fogem dos incêndios da injustiça que acendemos com a nossa falta de vontade de escutar.
Neste Tempo da Criação, oramos para que Tu nos chames, a partir da sarça ardente, com o fogo sustentador do Teu Espírito. Sopra sobre nós. Abre os nossos ouvidos e move nossos corações. Transforma o nosso olhar interior. Ensina-nos a contemplar a Tua criação e a escutar a voz de cada criatura que declara a Tua glória. Pois «a fé vem pelo ouvir».
Dá-nos corações para escutarmos as boas novas da Tua promessa de renovar a face da Terra. Ilumina-nos com a graça de seguir o Caminho de Cristo enquanto aprendemos a caminhar com leveza sobre este terra sagrada. Enche-nos da esperança de apagarmos o fogo da injustiça com a luz do Teu amor curativo que sustenta a nossa casa comum.
Em nome d'Aquele que veio para proclamar a boa nova a toda a criação, Jesus Cristo.
Amém.

Mensagem do Papa Francisco para a celebração do Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação (página web do Tempo da Criação)

08/08/2022

Lambeth-Welby: presidir à fraternidade

A XV Conferência de Lambeth termina hoje [8 de agosto], com a partida dos bispos participantes, após a liturgia de encerramento de ontem.
A escolha de fazer coincidir o fim oficial dos trabalhos da Conferência com o regresso dos bispos às suas províncias e dioceses não é acidental: de facto, começa a terceira fase da própria Conferência de Lambeth, aquela que leva o conteúdo dos documentos e discussões às várias Igrejas locais dispersas pelo mundo.
A atenção dos meios de comunicação e a preocupação da Conferência centraram-se no texto sobre a «Dignidade Humana» - que tocou (também) temas de moral sexual individual e a doutrina da Comunhão Anglicana sobre o matrimónio. Quase como se a unidade da Igreja na prevenção e gestão de abusos, sobre o ambiente e o desenvolvimento sustentável, sobre o compromisso ecuménico e a colaboração inter-religiosa, fossem elementos marginais - quase dados como garantidos, quando na realidade não o estão.
De facto, o Arcebispo de Cantuária, Justin Welby, salientou o facto de que a unidade da Igreja e da Comunhão Anglicana é a obra do agir de Deus dentro de instituições compostas por homens e mulheres pecadores; e que a reconciliação na Igreja não atinge uma homogeneidade sem distinções e diferenças, mas é o agir de Deus que permite o reconhecimento recíproco de pertença à mesma comunidade de fé e das diferenças que existem dentro dela.

Mediação e autoridade


Welby superou brilhantemente a prova do tópico potencialmente divisivo da homossexualidade e da doutrina do matrimónio, exercendo uma liderança com autoridade não hierárquica (afinal de contas, a que diz respeito ao seu papel na Comunhão Anglicana).
A sessão dedicada ao texto sobre a «Dignidade Humana» foi realizada à porta fechada, permitindo assim aos bispos uma franca e sincera liberdade de expressão; até à sua conclusão sem declarações verbais de consentimento, mas caraterizada por um longo tempo de silêncio e oração comum.
Antes dela, Welby tinha dirigido uma breve carta aos participantes. Havia dois pontos principais, partindo do reconhecimento «das grandes diferenças na Comunhão relativamente ao matrimónio entre pessoas do mesmo sexo e à sexualidade humana».
O primeiro diz respeito à resolução 1.10 da Conferência de Lambeth de 1996, que reafirmava a doutrina tradicional sobre o matrimónio entre um homem e uma mulher: reafirmando a sua validade, como também é afirmado no documento sobre a «Dignidade Humana» discutido na atual Conferência. Aqui, e este é o segundo ponto, reconhece-se o facto de «outras províncias se terem aberto ao matrimónio entre pessoas do mesmo sexo, após um cuidadoso processo de reflexão teológica e um processo de receção».

Do parlamentarismo à sinodalidade


Partindo da consciência de que «esta situação também faz parte da realidade da nossa Comunhão», Welby dirigiu-se aos participantes com um discurso introdutório sobre o documento sobre a «Dignidade Humana», em que retomou e aprofundou os pontos principais da sua carta e convidou a «falar francamente, mas com amor».
No final, todos os bispos presentes levantaram-se e aplaudiram - reconhecimento do papel de facto de mediação e salvaguarda da unidade eclesial que Welby obteve no terreno mais difícil da vida da Comunhão Anglicana. Nas suas palavras, ambas as visões sobre a sexualidade e o matrimónio foram reconhecidas e sentiram-se reconhecidas.
A Welby deve também ser reconhecido o mérito de ter dado uma forma sinodal refinada à sessão sobre a «Dignidade Humana», criando um espaço eclesial que tornou possível «o permanecer em relação uns com os outros com profundas diferenças - é uma forma de diversidade, e pensamos que a diversidade é uma coisa boa' (M. Curry, Presidente da Igreja Episcopal dos Estados Unidos).
A partir deste momento delicado para a Comunhão Anglicana, a Igreja Católica também pode aprender algo no seu processo sinodal global - porque, no final, «não lutámos para eliminar o outro, mas lutámos juntos dando um passo em frente até encontrarmos uma solução querida por Deus» (T. Makgoba, Arcebispo Anglicano da Cidade do Cabo).
Da XV Conferência de Lambeth sai uma modalidade de presidência eclesial que gira mais em torno de um processo de decidir sinodal do que parlamentar, em que a doutrina e a fé viva podem começar a encontrar um justo equilíbrio na construção da unidade de uma comunidade cristã que procura encontrar a sua forma de seguimento de Deus no mundo contemporâneo.

O Papa: ministério paterno na Igreja ocidental


Uma forma que olha para o ministério petrino de Francisco como algo que diz respeito à própria Comunhão Anglicana, num cruzamento ecuménico do ministério de presidência de uma Igreja cristã ainda confessionalmente dividida, mas em busca de imagens e práticas que a recomponham sem submissão ou homologação das histórias confessionais que cada Igreja traz consigo: «as disposições de separação enraizaram-se profundamente ao longo dos últimos cinco séculos - disse Welby -, mas acredito que hoje a maioria dos anglicanos reconhece o papa Francisco como o pai da Igreja no Ocidente.
Um ministério de paternidade que encontrou a via sinodal para praticar a unidade na Comunhão Anglicana, ou seja, para guardar a fraternidade eclesial onde os contextos, as culturas, as histórias abrem para diferentes leituras da Escritura e da doutrina; e que, ao mesmo tempo, fundamenta no ministério petrino católico um exercício partilhado e fraterno do primado como presidência paterna face à multiplicidade eclesial da fé cristã.

Marcello Neri
Settimana News (8 de agosto de 2022)

17/06/2022

Juntos pelo futuro da criação

De 8 a 11 de junho realizou-se em Istambul a quinta edição das
Halki Summit, organizadas pelo Patriarcado ecuménico e denominadas com o nome da sua histórica escola teológica na ilha de Halki, que ainda se encontra privada de autorização governamental para retomar a atividade académica.
A quinta edição, dedicada ao tema ecológico (Sustaining the Future of the Planet Together. The Prophetic Ministry of Pope Francis and Ecumenical Patriarch Bartholomew), nasceu da colaboração entre o Patriarcado ecuménico e o Instituto Sophia, e segue-se a uma visita da instituição académica dos focolarinos ao Patriarca Bartolomeu em janeiro de 2019.
Naqueles dias, no encontro entre o então reitor de Halki, o metropolita Elpidophoros, e o então reitor do Instituto Sophia, Mons. Piero Coda, que decorreu precisamente na sede da escola de Halki, tinha sido expresso o desejo de organizar em conjunto um seminário com estudantes e professores, católicos e ortodoxos, das duas instituições.
Reproduzimos o discurso de abertura da Halki Summit que o Patriarca ecuménico Bartolomeu dirigiu aos participantes, que é concretização daquele desejo e se centra num tema de grande atualidade e de particular urgência.

Excelências e líderes religiosos,
Distintos Doutores e dignitários,
Caros oradores e participantes na cimeira,

É para nós uma alegria dar-vos as boas-vindas na «Rainha das Cidades» para a quinta Cimeira de Halki do Patriarcado ecuménico, que este ano é organizada e patrocinada conjuntamente pelas nossas caras irmãs do Movimento dos Focolares e em particular pelo Instituto Universitário Sophia.
É de facto um privilégio enfrentar o tema do nosso encontro sobre «sustentar em conjunto o futuro do planeta» com uma escola educativa e religiosa que apresenta uma cátedra ecuménica única dedicada ao nosso venerado antecessor, o Patriarca ecuménico Atenágoras, e à estimada fundadora dos Focolares, Chiara Lubich. Estes líderes com visão das nossas respetivas Igrejas estabeleceram preciosas relações ecuménicas, que foram reforçadas e consolidadas nos últimos anos. Hoje temos a honra de ter entre nós o atual presidente do Movimento dos Focolares e vice-chanceler do Instituto Universitário Sophia, assim como o seu reitor, professor Giuseppe Argiolas. Obrigado por nos honrarem com a vossa presença e participação.
O objetivo desta cimeira é o estudo comparado dos ensinamentos e programas ecológicos iniciados - separadamente e em comum - pelo nosso amado irmão o Papa Francisco na Igreja Católica Romana e por nós modestamente na Igreja Ortodoxa.
Por esta razão, é verdadeiramente um dom ter entre nós o núncio recentemente nomeado, o arcebispo Marek Solczyński, que tornou muito palpável a presença de Sua Santidade na nossa humilde cimeira com a sua mensagem pessoal. Estamos profundamente gratos pela voz do Papa Francisco e pela presença do arcebispo.

Futuro em conjunto

E como em todas as nossas iniciativas - seminários educativos, simpósios de grande escala ou estas cimeiras mais especializadas - procurámos mais uma vez incluir oradores e participantes internacionais, interdisciplinares e ecuménicos. Isto porque estamos convencidos de que só em conjunto podemos responder adequadamente e resolver com eficácia a crise ecológica que a humanidade está a enfrentar e o desafio vital de proteger a criação de Deus no nosso tempo. Nesta ótica, gostaríamos de sublinhar duas palavras-chave do título do nosso tema: «futuro» e «juntos».
Muitos dos nossos oradores são educadores empenhados na sensibilização e na comunicação de conhecimentos aos jovens das nossas comunidades. Esta missão demonstra a ligação inseparável entre a nossa geração e a dos nossos filhos.
Somos responsáveis pelos danos que causamos no nosso mundo. Somos responsáveis por deixar um mundo sustentável para o futuro. Temos a responsabilidade de pasmar um mundo que os nossos filhos possam receber, respeitar e transmitir aos seus filhos. E infelizmente, somos a primeira geração que poderá deixar um mundo em piores condições do que aquele que herdámos. É por isso que a palavra «futuro» é fundamental.
A segunda palavra que gostaríamos de sublinhar é «juntos». Nas últimas décadas - desde que o Patriarcado ecuménico sublinhou que o cuidado pela criação é parte integrante da nossa vocação como cristãos e da nossa responsabilidade como seres humanos - tornou-se cada vez mais claro para nós que nenhuma ciência ou disciplina, nenhuma instituição ou indivíduo, nenhuma nação ou organização, mas também nenhuma confissão ou religião pode potencialmente considerar as diferentes perspetivas ou abordar as várias repercussões da crise ecológica.
Isto significa que não podemos apontar o dedo a uma única causa, mas somos obrigados a dar as mãos para assumirmos em conjunto a responsabilidade de deixarmos uma pegada mais leve e deixarmos em herança o menor dano à criação que recebemos como dom.

«Um só Deus, criador de todas as coisas»


No «símbolo da fé» partilhado pelas nossas «Igrejas irmãs» - aquele que as nossas duas Igrejas reconhecem e respeitam como o Credo niceno - professamos «um só Deus, criador do céu e da terra e de todas as coisas visíveis e invisíveis». É uma confissão comum que celebraremos juntos dentro de poucos anos, por ocasião do 1700º aniversário da convocação daquele histórico primeiro concílio ecuménico que se reuniu não muito longe daqui.
Assim, para além do ensino das Escrituras sobre o nosso Deus Criador que modelou o mundo por amor e a partir do nada, o cristianismo defende tradicional e doutrinariamente que toda a criação é uma parte inseparável da nossa identidade sagrada e do nosso destino divino.
Por extensão, portanto, cada ação humana deixa uma pegada duradoira no corpo da terra. As atitudes e comportamentos humanos em relação à criação têm um impacto direto e refletem atitudes e comportamentos humanos em relação a outras pessoas, bem como conceitos humanos sobre Deus.
A ecologia não pode ser compreendida sem referência à teologia, tal como não pode ser compreendida sem referência à economia. A crise ecológica não só põe em questão a nossa capacidade de viver de forma sustentável, mas também a nossa sobrevivência e a nossa fé em Deus. Torna-se assim evidente que só uma resposta colaborativa e coletiva - por parte de líderes religiosos, cientistas informados, autoridades políticas, instituições educacionais e organizações financeiras - será capaz de abordar eficazmente estas questões vitais do nosso tempo.

Visão eucarística e acética

Neste momento, gostaríamos de vos recordar dois outros conceitos da teologia e da espiritualidade ortodoxa que temos sublinhado repetidamente no nosso esforço para discernir os modos de promover a consciência e a ação ambiental. A primeira destas palavras é «eucaristia».
Ao invocar um «espírito eucarístico», a Igreja ortodoxa lembra-nos que o mundo criado não é simplesmente um bem que pessoalmente possuímos, mas é antes um dom sagrado - um dom do alto, um dom maravilhoso e belo. A resposta adequada a um dom assim é aceitá-lo e acolhê-lo com gratidão e agradecimento.
Isto impede como seres humanos qualquer tentativa de possuir ou controlar o planeta e os seus recursos. Neste sentido, uma visão eucarística ou sacramental do mundo é o oposto do caminho do consumo egoísta e esbanjador. Os seres humanos são chamados a serem seres eucarísticos - gratos ao Criador e respeitosos para com toda a criação.
A segunda palavra é «ascese». A ética ascética ou visão do mundo é a intenção e o esforço para proteger o dom sagrado da criação. É a luta pela autolimitação e o autocontrolo, através do qual já não consumimos voluntariamente ou desperdiçamos todos os frutos, mas em vez disso manifestamos um sentido de frugalidade e de abstinência. Estas duas atitudes de proteção e de autocontrolo são expressões de amor por Deus, pela humanidade e pela criação natural. Só esse amor pode proteger o mundo da inevitável destruição.

Falar de comunhão

O que gostaríamos de salientar hoje é que quando falamos de eucaristia e ascese, pensamos convencionalmente no rito da liturgia e na via do monaquismo. Gostaríamos de vos encorajar a pensar para além do significado limitado destes termos, que ao longo dos séculos têm sido sobrecarregados com muitas camadas de cerimónias e de austeridades. Em vez disso, gostaríamos de vos inspirar a considerar estes conceitos como formas diferentes de falar de comunhão. Naturalmente, o termo «eucaristia» é muito mais considerado como sinónimo de comunhão e partilha.
Mas a «ascese» também é mal interpretada quando a reduzimos a um exercício individualista. Quando nos abstemos de certos alimentos, luxos ou desejos, estamos conscientes de que as nossas escolhas afetam outras pessoas. Recordamos que aqueles que têm são contrabalançados por aqueles que não têm. Assim, a cosmovisão ascética do mundo é também um outro modo de aprender a partilhar com os outros e com o resto do mundo.
E é aqui que a visão do nosso irmão Papa Francisco coincide com a visão do mundo que temos vindo a propor e a promulgar há mais de trinta anos. Ambos estamos convencidos de que o que fazemos ao nosso mundo, o «fazemos ao mais pequeno dos nossos irmãos e irmãs" (Mt 25,40), tal como o que fazemos aos outros, o fazemos ao próprio Deus (Mt 25,45). Não foi por acaso que, imediatamente após ter publicado a encíclica sobre o ambiente «Laudato si'», o Papa Francisco publicou a «Fratelli Tutti».
E não foi por acaso que, após várias encíclicas anuais desde 1989 sobre a proteção do ambiente natural, o Patriarcado ecuménico aprovou um documento intitulado «Para a vida do mundo».

Conexões

Tanto o Papa como nós reconhecemos que o sucesso de todas as nossas atividades ecológicas se mede pela forma como tratamos os nossos irmãos e irmãs, especialmente os pobres. E a eficácia da nossa resposta à crise ecológica avalia-se pela forma como enfrentamos os desafios sociais do nosso mundo.
Além disso, tanto o Papa como nós estamos plenamente conscientes de que só podemos enfrentar estes problemas em conjunto e não de modo isolado. É por isso que emitimos declarações conjuntas - juntamente com o arcebispo de Cantuária - sobre a urgência da sustentabilidade ambiental, sobre o seu impacto nos que vivem na pobreza e sobre a importância da cooperação global.
É esta a exortação paterna que vos deixamos hoje como indicação para as vossas discussões nos próximos dias. Recordai sempre que a nossa vocação como cristãos consiste em criar e reforçar conexões:
· conexões entre nós e toda a criação de Deus;
· conexões entre a nossa fé e a nossa ação, entre a nossa teologia e a nossa espiritualidade, entre o que dizemos e o que fazemos;
· conexões entre ciência e religião, entre as nossas convicções e cada disciplina;
· conexões entre a nossa comunhão sacramental e a nossa consciência social;
· conexões entre a nossa geração e as gerações futuras, assim como entre o céu e a terra;
· conexões entre as nossas duas Igrejas, mas também com outras Igrejas e outras comunidades religiosas.
Porque sempre que restringimos a nossa perceção da vida a nós próprios, descuramos a nossa vocação de transformar o mundo inteiro. E a criação oferece uma oportunidade única para todos nós - normalmente tão divididos - de olharmos além de nós próprios para enfrentarmos um desafio comum e uma tarefa que temos de encarar juntos.
É precisamente por isto que colaboramos tão estritamente com o Papa Francisco. E é este o serviço partilhado que vos pedimos que apoieis, imiteis e prossigais nas vossas vidas e nos vossos ministérios.
Que Deus vos abençoe a todos.

Tradução a partir da versão italiana de Settimana News (9 de junho de 2022).
Original inglês na página web da Halki Summit.

30/05/2022

Ortodoxia ucraniana: distante de Moscovo

Após mais de três séculos de dependência do patriarcado de Moscovo, a Igreja ortodoxa ucraniana pró-russa também decidiu interromper as suas relações com o patriarcado russo.
Uma bofetada sem precedentes que Kirill procurou afincadamente evitar, mas que o seu apoio aberto à guerra de agressão tornou inevitável. Tratava-se apenas de escolher o momento.
A 27 de maio, a assembleia do clero e dos leigos das 53 dioceses da Ucrânia aprovou uma resolução de dez pontos que põe fim às remanescentes relações de dependência.

Uma ligação insustentável

Na abertura da reunião, o metropolita Onufriy reivindicou o coerente trabalho pastoral da sua Igreja desde a primeira assembleia de bispos no seguimento da independência, em 1992, que ficou para a história como a assembleia de Khasrkov. As hostilidades bélicas abertas pela Rússia a 24 de fevereiro colocaram a Igreja numa posição insustentável.
«Não percamos a nossa humanidade e a sua imagem de Deus, enquanto o mal invadiu os nossos corações, e não ponhamos em perigo a nossa fé; estas são as tarefas que temos de enfrentar hoje».
Onufriy reivindica a sua condenação imediata da guerra, os 13.000 refugiados acolhidos durante o conflito (dos 6 milhões que fugiram do país), os 20 veículos doados ao exército nacional, as 190 toneladas de ajuda. Apesar disso, a Igreja pró-russa, pelos seus laços canónicos com Moscovo, tem estado no centro de inúmeras suspeitas. Alguns padres foram acusados de ligações aos serviços secretos russos, dezenas de decisões administrativas tomaram igrejas e transferiram comunidades para a obediência da Igreja autocéfala, pelo menos 15 casos de confrontos físicos com os fiéis.
Finalmente o perigo mais grave: a proposta de lei 7204, apresentada a 22 de março, que proibiria as atividades da Igreja pró-russa em todo o território e nacionalizaria todos os seus bens, incluindo os grandes mosteiros das grutas de Kiev (não a propriedade, mas a gestão), Potchaev e Svyatogorsk. Acabar com a perseguição, pacificar o povo e discutir o futuro comum foram as instruções do metropolita à assembleia.

Dez pontos de distância

A resolução da assembleia conciliar articula-se em dez pontos:
- Condenação da guerra;
- Apelo a negociações entre a Ucrânia e a Rússia;
- «Manifestamos o nosso desacordo com a posição do Patriarca Kirill de Moscovo e de toda a Rússia sobre a guerra na Ucrânia»;
- Alterações aos estatutos internos;
- Apreço pela forma como a Igreja geriu os acontecimentos;
- Pedido do rito do crisma sagrado (próprio das Igrejas autocéfalas);
- Delegação de questões sinodais nos bispos durante a lei marcial;
- Pedido de abertura de paróquias ucranianas nos locais de residência dos refugiados no estrangeiro (6 milhões);
- «Consciente da sua responsabilidade perante Deus, a assembleia conciliar exprime o profundo pesar pela falta de unidade na ortodoxia ucraniana. A assembleia considera a presença do cisma como uma ferida profunda e dolorosa no corpo da Igreja. Consideramos lamentável que as últimas decisões do patriarca de Constantinopla na Ucrânia que levaram à criação da Igreja Ortodoxa da Ucrânia (Igreja Ortodoxa Ucraniana é o título da Igreja pró-russa) só tenham contribuído para a confusão, provocando confrontos físicos. Mas mesmo em circunstâncias tão críticas, a assembleia conciliar não perde a esperança de renovar o diálogo». Para que isto aconteça, pede-se que se ponha fim à tomada das igrejas e à transferência forçada de paróquias, que se reconheça que o estatuto da Igreja pró-russa tem um grau de autonomia superior ao da Igreja autocéfala, que se inicie um debate com vista ao reconhecimento da canonicidade dos hierarcas e dos padres da Igreja autocéfala;
- Trabalhar por uma comunicação fraterna, pelo fim da guerra e pela reconciliação com os inimigos.

O sonho de um patriarcado único

Agora o campo de confronto situa-se totalmente no interior da ortodoxia ucraniana. A Igreja pró-russa não pode renunciar ao diálogo com a Igreja autocéfala do metropolita Epifanij, mas esta última só será plenamente legitimada por um confronto positivo com a outra parte.
Reabre-se uma possibilidade espantosa, cultivada como um sonho por gerações de crentes: o de um único patriarcado de Kiev capaz não só de unificar as comunidades ortodoxas, mas também de incluir as comunidades greco-católicas.
A unidade de rito, de língua e de história permitiria uma jurisdição dupla e convivial: os ortodoxos em comunhão com Constantinopla e os católicos em comunhão com Roma. O que tem estado no centro do cisma que está a abalar as Igrejas ortodoxas e colocar dificuldades ao diálogo ecuménico entre as Igrejas cristãs, pode converter-se no início de uma experiência surpreendente: uma dupla obediência eclesial na fronteira entre o Oriente e o Ocidente, a plena superação do temido "uniatismo".
O cristianismo, ferido por uma justificação insensata da guerra, poderia inventar um gesto profético de extraordinária densidade para a futura concórdia no continente. A capacidade visionária do papa Francisco e a sua excelente relação com Bartolomeu de Constantinopla são necessárias para a iniciativa. As paixões atuais ainda não o puseram em foco, mas esta possibilidade merece ser totalmente percorrida.
Mais difícil é prever o que poderá acontecer em Moscovo. É difícil imaginar que Kirill possa sobreviver à perda da Ucrânia, apesar da expectativa visível de unir os territórios do Donbass, para além do da Crimeia.
Seria o fim definitivo não só do Russkiy mir (mundo russo), mas também da reivindicação hegemónica de Moscovo relativa à Ortodoxia e à hipótese da "terceira Roma".
Tudo isto não invalidaria o papel relevante de Moscovo na Ortodoxia nas próximas décadas, nem a sua tarefa decisiva de sustentar a unidade da Rússia face ao perigo de uma desagregação desastrosa.

Lorenzo Prezzi
Settimana News (29 de maio de 2022).

12/05/2022

Não à guerra em nome de Deus

Entrevista de Ingo Brüggenjürgen ao cardeal Kurt Koch, presidente do Conselho Pontifício para a Unidade dos cristãos

Senhor Cardeal, se tivesse de chegar a uma conclusão provisória, como é que se encontra atualmente a unidade dos cristãos?

Depende dos cristãos de que estamos a falar. Temos duas secções no nosso Conselho Pontifício, a secção oriental e a secção ocidental. Isto remonta aos vários cismas, primeiro nos séculos V e XI entre o Oriente e o Ocidente, e às divisões do século XVI na Igreja do ocidente. Ambos os diálogos são muito diferentes. Hoje, naturalmente, na linha da frente está o diálogo com a Ortodoxia, que se encontra numa situação muito difícil devido à guerra na Ucrânia.
 
O senhor disse que muitas pessoas olham para a Ucrânia com grande preocupação. Há cristãos de ambos os lados, assim como líderes eclesiais de um e de outro lado que mandam os cristãos combater. E hoje há cristãos a lutar contra outros cristãos; há mesmo ortodoxos a lutar contra outros ortodoxos. Esta é uma mensagem desoladora para o cristianismo em todo o mundo.

É, de facto, uma tragédia particular, precisamente porque o Patriarcado ortodoxo russo tem repetido continuamente que se sente obrigado a proteger os cristãos e que protesta contra a sua perseguição. E hoje temos cristãos a lutar contra cristãos; de facto, temos mesmo ortodoxos que lutam contra ortodoxos. Esta é uma mensagem trágica para o cristianismo em todo o mundo.

Que possibilidades oferece a diplomacia cristã? A diplomacia, especialmente na Igreja Católica, tem séculos de experiência.

Sim, é muito importante. Acima de tudo, que existe um acordo segundo o qual estamos ao serviço da paz. Portanto, como disse o papa Francisco, o Deus cristão é um Deus de paz e não um Deus de guerra. E eu não posso favorecer e apoiar a guerra em nome deste Deus cristão. É uma posição não cristã.

Muitos cristãos tinham alimentado grandes esperanças após o encontro entre o patriarca Kirill e o papa em 2016. Abriu-se o diálogo. O senhor também trabalhou nos bastidores para que houvesse uma conversa por vídeo com esta finalidade. Na situação atual, ainda se pode falar realmente de diálogo?

O diálogo nunca deve ser interrompido, porque é a única forma de dar a conhecer a própria posição. E o papa Francisco deixou muito claro neste vídeo que estava grato pelo encontro. Ele acrescentou: não somos clérigos de Estado, somos pastores do povo e, portanto, não temos outra mensagem senão a de pôr fim a esta guerra. Foi uma mensagem muito clara. Não posso julgar se o patriarca a entendeu deste modo.

Ainda há esperança de que este diálogo dê frutos?

Nunca perco a esperança de que dê frutos. Mas penso que temos de discutir finalmente um problema que sempre deixámos à margem dos diálogos: é o problema da relação entre a Igreja e o Estado. Sobre este ponto, há uma visão completamente diferente. No Ocidente tivemos de aprender com os desenvolvimentos históricos e aprendemos mesmo que a relação adequada entre Igreja e Estado é a separação, sabendo-se ambos os lados parceiros com igual dignidade.
Esta é uma visão desconhecida no Oriente, na Ortodoxia. Aí fala-se de uma sinfonia entre Igreja e Estado. E esta visão está muito enraizada. Penso que Oeldemann, diretor do Instituto Ecuménico de Paderborn, declarou muito claramente, num artigo publicado pela KNA [agência de notícias católica alemã], que este conceito, na sequência dos desenvolvimentos da guerra na Ucrânia, levanta questões.

Há, portanto, ainda muito trabalho a ser feito. Uma questão que lhe é muito cara é a unidade dos cristãos. Como é que a vê? Não se sente por vezes desencorajado quando se encontra numa viagem com uma duração tão longa e se dá conta de que não se está realmente a fazer progressos?

Quando aceitei esta missão há dez anos, escolhi um patrono especial, Moisés. Porque Moisés conduziu o seu povo por todo o lado, mesmo através do deserto, e não tinha outra tarefa senão conduzi-lo à terra prometida. Mas ele próprio nunca pôde entrar nela. No entanto, nunca desistiu. E eu penso que a terra prometida que está diante de nós é a unidade dos cristãos. Não creio que possa vê-la ao longo da minha vida. Mas isso não significa que devamos desistir. Não há outra alternativa. A unidade dos cristãos é vontade do Senhor. E temos de lhe ser obedientes, para tentarmos reencontrar na história esta unidade rompida.
Não podemos fazer esta unidade sozinhos. É significativo que Jesus não peça unidade na sua oração sacerdotal no capítulo 17 do Evangelho de João, mas reze por ela. E assim não podemos fazer nada melhor do que rezar e lutar por esta unidade, sabendo que é um dom a receber. Mas investindo todas as nossas forças e depois sentindo-nos, em sentido evangélico, servos inúteis.

Há também o dito de Cristo «Somos um só». O senhor escreveu mesmo no seu brasão que Cristo deve ter o primado sobre todas as coisas. Porque é que os cristãos estão, por assim dizer, tão relutantes em se moverem?

Tenho a impressão de que nem todos os cristãos querem realmente a unidade ou que têm ideias muito diferentes acerca dela. Penso que existem diferentes visões da unidade. A Igreja católica considera que temos de encontrar a unidade na fé, nos sacramentos e nos ministérios. Existem, além disso, outras ideias completamente diferentes. Um número considerável de Igrejas que emergiram da Reforma consideram que temos de reconhecer reciprocamente todas as realidades eclesiais que existem como Igrejas. A soma de todas estas Igrejas existentes constituiria a única Igreja de Cristo.
São ideias muito diferentes e é, por isso, que temos de as considerar de um modo completamente novo: o que é que realmente queremos? Qual é o objetivo? Por exemplo, se estiver no aeroporto de Frankfurt e não souber para onde quer ir, não se surpreenderá se aterrar em Madrid e não em Roma, e isso é realmente uma pena. Penso, da mesma forma, que temos de considerar de novo qual é o objetivo. Para onde queremos ir? Só assim podemos programar os próximos passos.

O que é que pode fazer mais a Igreja Católica, especialmente no que diz respeito à unidade? A mudança é sempre muito importante para nós. Onde é que podemos porventura mudar, para que possa haver uma reaproximação mais decisiva?

A Igreja Católica ainda tem muito a aprender sobre o que significa viver a unidade na diversidade. E as outras igrejas, creio eu, precisam de pensar no que significa procurar a unidade na sua diversidade, neste equilíbrio permanente. Blaise Pascal escreveu nos seus Pensamentos (Pensées): «A unidade que não depende da multiplicidade é ditadura. A multiplicidade que não depende da unidade é anarquia. Temos constantemente de procurar e encontrar o caminho entre a ditadura e a anarquia».

Settimana News (10 de maio de 2022).

28/04/2022

A guerra entre a Rússia e a Ucrânia: As Igrejas ortodoxas perante o conflito

Entrevista de Pierluigi Mele ao P. Lorenzo Prezzi, diretor do portal de informação religiosa Settimana News

A guerra na Ucrânia constitui uma clivagem dramática para o cristianismo oriental. Que cenários são possíveis? Falamos disto nesta entrevista com o P. Lorenzo Prezzi, jornalista e teólogo, especialista no cristianismo ortodoxo. O P. Prezzi é o diretor do portal de informação religiosa settimananews.it

P. Lorenzo, o senhor é um especialista no mundo ortodoxo. Um mundo ainda pouco conhecido. A guerra na Ucrânia colocou-o em evidência. Em particular pelas declarações enfáticas do Patriarca Kirill de apoio total à guerra de Putin. Antes de analisarmos o conteúdo da posição do religioso moscovita, vamos concentrar-nos um pouco sobre ele. Qual é a história de Kirill?

Vladimir Michajlovič Gundjaev, o futuro Patriarca Kirill, nasceu em São Petersburgo em 1946 e é uma personalidade de relevo que conheceu muitas fases da sua vida. É filho e neto de padres que viveram o Gulag e a perseguição. Como salientou Antonio Sanfrancesco, o pai de Kirill passou 47 detenções, sete condenações ao exílio, num total de 30 anos de prisão. O avô passou três anos na famosa prisão de Kolyma, na Sibéria. Kirill conhece bem a duríssima época das perseguições comunistas na União Soviética. Não surpreende que tenha entrado no seminário em 1965. O que é surpreendente, no entanto, é a sua carreira muito rápida. Ordenou-se padre em 1969, graduou-se em 1970 e tornou-se o primeiro secretário do metropolita Nikodim no mesmo ano. De 1974 a 1984 foi reitor do seminário e da academia teológica. Em 1976 já era bispo. O verdadeiro ponto de viragem aconteceu em 1971, quando se tornou o representante oficial do Patriarcado de Moscovo no Conselho Ecuménico das Igrejas em Genebra. Conheceu as outras Igrejas cristãs e o Ocidente. Conta-se a sua paixão pela prática desportiva nas pistas de neve da Suíça, admiração por relógios caros e carros potentes. A propósito de um relógio de valor há um relato com alguns anos de uma fotografia sua em paramentos litúrgicos em que é visível um relógio de marca, que entretanto desapareceu, depois de uma campanha de imprensa contra ele. Tornou-se um interlocutor apreciado e criou uma reputação de liberal e ecuménico. Deu forma à intuição de Nikodim de usar a abertura ecuménica para defender a Ortodoxia no seu país. O poder soviético começou a apreciar os contactos ocidentais da Igreja russa e a imagem positiva que elas garantiam. Em 1989, tornou-se presidente do departamento para as relações externas do patriarcado. Este papel central garantiu-lhe uma presença estável no sínodo, contactos com o Ocidente e conhecimento direto dos outros bispos. Assim, à morte do Patriarca Alexis, foi eleito como seu sucessor (2009). Aqui abre-se uma terceira fase. O colapso da União Soviética e o impulso de autonomia das Igrejas ortodoxas, anteriormente subservientes a Moscovo, levaram-no a reforçar o papel central das instituições patriarcais e a elaborar a doutrina do «espaço russo» (Russkij mir). O vínculo litúrgico, a longa tradição, a formação comum de bispos e teólogos sugerem o reavivar dos vínculos pastorais, mesmo após o reaparecimento dos estados e nacionalidades. Mas é a chegada política de Putin que realiza o seu desígnio. O instinto deste último para devolver consistência e império ao poder moscovita associa-se à opção pastoral de Kirill. Este último fornece a hipótese espiritual e cultural e a linguagem compatível e coaxial com os sonhos do novo czar. Juntos impõem um novo centralismo, extinguem as expectativas democráticas e sufocam lentamente o espaço da sociedade civil. Em contrapartida, Putin deu à Igreja ortodoxa espaço de manobra absolutamente impensável apenas alguns anos antes: a presença nas escolas, o amplo reconhecimento nos meios de comunicação social, o reconhecimento dos diplomas e da teologia nas faculdades estatais, o apoio maciço à construção de igrejas (ao ritmo de 1000 igrejas por ano), a reabertura de centenas de mosteiros, a cobertura "política" às atividades internacionais da Igreja ortodoxa russa e o apoio para impor a sua hegemonia à Ortodoxia mundial. A nova constituição faz referência explícita a Deus e garante que a família é constituída por um homem e uma mulher. Os valores morais tradicionais constituem um escudo entre a espiritualidade da Rússia e a decadência do Ocidente.

Nos últimos dias, o Huffingston post voltou a publicar a notícia, retirada do arquivo Mitrokhin, de que Kirill seria desde os primeiros anos um agente do KGB. Isto explica, porventura, a forte ligação com Putin?

O envolvimento de Kirill com os serviços secretos russos com o nome de Mikhailov está hoje esclarecido como questão de facto, mas é sempre entendido como uma "questão de direito". No regime soviético, dificilmente se poderia conseguir desempenhar funções públicas e chegar a contactos internacionais sem um "serviço" conveniente ao KGB. Mas seria um erro julgar o facto a partir da nossa sensibilidade. Inclinar-se perante a polícia secreta era também o instrumento para salvaguardar um mínimo de liberdade e de espaço para a vida eclesial. Afirmou-o diretamente o ex-metropolita de Kiev, Filaret, que na altura era concorrente direto de Kirill na sucessão de Alexis. Questionado sobre o seu passado como informador, respondeu que essa era a condição de todos os bispos e de todos os que tinham autoridade na Igreja. O domínio da sociedade na ditadura comunista era generalizado e a identidade ortodoxa não permitia a existência de uma Igreja "subterrânea" ou de um "estado de confissão" contra os poderes constituídos. Mesmo na Igreja católica polaca, que era muito mais dura e capaz de se defender, foram numerosos os casos de colaboracionistas. Foram apanhados D. Wielgus, arcebispo nomeado de Varsóvia (que se demitiu imediatamente) e o cardeal Henryk Roman Gulbinowicz. Os serviços deste último prolongaram-se por mais de 20 anos. Voltando a Kirill, é possível que tenha tido conhecimento direto de Putin. A pastoral do exército e dos serviços de segurança fez parte certamente das suas competências. Há algumas semanas, a citação evangélica de Putin sobre o maior amor para com um soldado  dar a vida pelos seus amigos  causou escândalo. As palavras evangélicas ressoaram muito antes na boca de Kirill a respeito do serviço militar.

Vejamos o conteúdo da posição de Ķirill. A posição do Patriarca é uma verdadeira teorização de uma autocracia teocrática. Neste cenário em que medida é que a religião se torna um instrumento de poder político? Ou será que os "dois reinos" estão tão imbricados que formam um único corpo à semelhança que se verifica no Irão?

Em vez de teocracia, na linguagem ortodoxa da tradição, falaria de sinfonia, de acordo entre governo civil e autoridade eclesial. Após muitos séculos, Kirill parecia estar em condições de retomar o modelo de Bizâncio, o acordo entre o imperador e o sínodo. Na teocracia iraniana, a Sharia é o "todo" do poder e a vertente religiosa determina a orientação política. Na Rússia, há mais espaço entre Igreja e Estado, o poder está firmemente nas mãos do presidente da Federação, e a laicidade das instituições, embora obscurecida, é ainda assim afirmada. O sinal de uma certa distância é dado pelo acontecimento "catastrófico" do século XX russo. Para Kirill é o fim dos Romanov e a Revolução de Outubro. Para Putin é a implosão da União Soviética nos anos 90. O projeto político e o projeto eclesiástico integram-se no Russkij mir, na expectativa de recompactar o velho espaço soviético com a tradição ortodoxa russa e o seu messianismo antiocidental. A crise da hipótese política poderá levar à recusa do projeto religioso. O que hoje parece certo é a perda da Ucrânia ortodoxa para o Patriarcado de Moscovo. Não é apenas a perda de um terço da totalidade das paróquias do Patriarcado e de uma preciosa quantidade de vocações monásticas e sacerdotais, mas é sobretudo o distanciamento simbólico do berço histórico da Igreja, a Rússia de Kiev. Se Putin está a perder a guerra, Kirill já perdeu a Ucrânia ortodoxa.

As teses justificativas de Kirill sobre a guerra geraram escândalo no mundo ortodoxo e não só (há afirmações que são aberrações teológicas). Sabemos que houve a reação de 400 sacerdotes ortodoxos que alegam que a Doutrina do "mundo russo", preconizada pelo Patriarca, é uma heresia. Em que sentido?

Kirill justifica teologicamente a agressão contra a Ucrânia em nome da pertença comum à fé ortodoxa, atacada pelo Maligno representado pela imoralidade e pela decadência ocidental. Trata-se de um confronto apocalíptico, do conflito metafísico entre luz e trevas, da necessidade de evitar para a ortodoxa russa a deriva antievangélica das Igrejas do Ocidente. Mas a identificação do Reino de Deus com uma etnia (russa) e as suas atuais instituições políticas constitui  é o que afirmam mais de 500 teólogos ortodoxos  uma infidelidade radical ao Evangelho. A opção de Kirill sufoca a originária dimensão universalista da fé cristã e obriga o povo crente da Ucrânia a uma posição de quietude e demissão no que diz respeito aos deveres de justiça e de dignidade das pessoas. 300 padres ortodoxos russos (de um total de 40.000) expressaram o seu apoio a um distanciamento da guerra. Mais de 400 padres ucranianos, de obediência russa, pediram que Kirill fosse demitido das suas funções.

Os mesmos sacerdotes que assinaram o apelo pediram ao Conselho dos Primazes das Igrejas Orientais Antigas que afastasse Kirill do "trono" patriarcal. Isto é possível? Kirill está isolado no mundo ortodoxo?

É difícil imaginar a demissão forçada de Kirill. No texto dos padres ucranianos, a referência histórica para demitir Kirill é um Concílio dos patriarcas orientais de 1666 que condenou o Patriarca Nikon de Moscovo. Não se vê como é que hoje isto possa acontecer. E, nos estatutos da Igreja russa, o direito de examinar a ação do Patriarca está reservado ao Concílio dos bispos (a assembleia que une todos os bispos). Nenhum bispo russo se pronunciou até agora contra Kirill. Pelo contrário, houve cerca de dez que o defenderam em público. O único que poderia tomar uma decisão sobre o assunto, não num sentido legal mas num sentido substancial, é Putin. É provável que o próximo Concílio de bispos (previsto para o próximo outono) discuta a questão ucraniana, mas nada sugere a expectativa de uma deslegitimação de Kirill.

A guerra, em todo o caso, assinala uma clivagem dramática no mundo do cristianismo oriental (não apenas ortodoxo). Que consequências terá a nível ecuménico?

Sim, a guerra vai determinar um antes e um depois. Tendo em conta a extraordinária riqueza histórica, espiritual e teológica da Igreja ortodoxa e da Igreja russa em particular, é possível esperar um período de profunda reflexão e experimentação pastoral. É provável que o cisma em curso entre a Ortodoxia eslava e a Ortodoxia helénica seja enfrentado de maneira distinta e que a própria Ucrânia possa tornar-se terreno de experimentação positiva no seio das Igrejas ortodoxas e com a Igreja católica de rito oriental. Por agora, pode registar-se uma ferida grave no testemunho do cristianismo no seu conjunto.

Última pergunta: o Papa Francisco não é demasiado otimista em relação a Kirill (os dois estão nos antípodas)?

Francisco navega a uma profundidade que relativiza as graves turbulências à superfície. Em relação à Ucrânia, pôs em ação a oração universal da Igreja, a dimensão da piedade popular (consagração da Ucrânia e da Rússia ao Coração Imaculado de Maria), a atividade diplomática da Santa Sé, competências teológicas, uma dura condenação da guerra, mas sem acusações diretas a pessoas, mesmo que estas se possam intuir. Ele sabe que atualmente é o único ponto de referência credível para o conjunto das Igrejas ortodoxas e que no seu serviço petrino deve assumir o peso de representar o cristianismo no seu conjunto. É uma situação sem precedentes que não se mede pelas relações pessoais ou pelas urgências imediatas da geopolítica, mas pelas correntes profundas da história.

Rai News (22 de abril de 2022).

25/04/2022

Saudação do Papa Francisco ao Patriarca Kirill de Moscovo por ocasião da Páscoa

A Sua Santidade Kirill, Patriarca de Moscovo e de Toda a Rússia

«Ele foi atormentado e ferido, mas cura todas as doenças e todas as enfermidades.
Ele foi levantado na árvore e pregado; mas restabelece-nos pela árvore da vida...
Morre, mas dá vida, e destrói a morte com a morte.
É sepultado, mas levanta-se. Desce ao inferno, mas desperta dele as almas».
(São Gregório, o Teólogo. Discurso 29. Sobre o Filho de Deus).


Vossa Santidade!

Na Sua bondade, o Senhor permitiu-nos mais uma vez celebrar a Páscoa. Nestes dias, ao sentirmos o peso do sofrimento dos membros da nossa família humana, destroçados pela violência, pela guerra e por muitas injustiças, maravilhemo-nos novamente com um coração agradecido por o Senhor ter tomado sobre si todo o mal e toda a dor do nosso mundo. Ele fê-lo para todo o sempre e em todo o universo pelo poder da Sua Cruz, entregando-se filialmente nas mãos do Pai (cf. Lc 23,46).
Obediente à vontade do Pai, na unidade do Espírito, Jesus deu a sua vida para destruir a morte. De facto, a morte de Cristo foi o início de uma nova vida e da libertação dos laços do pecado bem como a ocasião da nossa alegria pascal, ao abrir a todos os homens o caminho desde a sombra das trevas até à luz do reino de Deus.
Caro irmão! Rezemos uns pelos outros para que possamos dar testemunho credível da mensagem evangélica de Cristo ressuscitado e da Igreja como sacramento universal de salvação, para que todos possam entrar no reino de «justiça, paz e alegria no Espírito Santo» (Rom 14,17).
Que o Espírito Santo transforme os nossos corações e nos torne verdadeiros construtores de paz, especialmente para a Ucrânia devastada pela guerra, para que, o mais depressa possível, a grande passagem pascal da morte para uma nova vida em Cristo se torne uma realidade para o povo ucraniano, que anseia por um novo amanhecer que ponha fim às trevas da guerra.
Unidos em oração recíproca, entregamos as nossas Igrejas e todos os nossos irmãos e irmãs à intercessão de Maria, Mãe de Deus, que esteve com o seu Filho no seu sofrimento e na sua morte e partilhou a alegria da sua ressurreição. Desejo de todo o coração a Vossa Santidade uma Páscoa alegre e abençoada!

Cristo Ressuscitou!

Texto da saudação em russo.

Mensagem de Páscoa do Patriarca Bartolomeu de Constantinopla

BARTOLOMEU
PELA MISERICÓRDIA DE DEUS
ARCEBISPO DE CONSTANTINOPLA - NOVA ROMA
E PATRIARCA ECUMÉNICO
A TODO O PLEROMA DA IGREJA
GRAÇA, PAZ E MISERICÓRDIA
DE CRISTO GLORIOSAMENTE RESSUSCITADO

Depois de termos percorrido o caminho das lutas ascéticas da Santa e Grande Quaresma e de termos vivido contritos a veneranda Paixão do Senhor, cheios agora da luz infinita da Sua resplandecente Ressurreição, louvemos e glorifiquemos o Seu nome supraceleste, aclamando «Cristo ressuscitou!», alegria do mundo.
A Ressurreição é o núcleo da fé, da piedade, da cultura e da esperança dos Ortodoxos. A vida da Igreja, na sua manifestação divino-humana, sacramental e litúrgica, espiritual, ética e pastoral e no bom testemunho da graça que vem em Cristo e da esperança da «comum ressurreição», encarna e reflete a derrota esmagadora do poder da morte através da Cruz e da Ressurreição do nosso Salvador e a libertação do homem da «escravidão do inimigo». A Ressurreição é testemunhada pelos Santos e pelos Mártires da fé, pelo dogma, pelo ethos, pela estrutura canónica e pela liturgia da Igreja, pelos templos sagrados, pelos mosteiros e pelos nossos veneráveis santuários, pelo zelo divino do clero sagrado, pela dedicação sem pré-condições do ter e do ser dos monges em Cristo, pela convicção ortodoxa dos fiéis e pelo impulso escatológico de todo o modo eclesiástico de viver.
A festa da Páscoa não é para os ortodoxos uma evasão temporária da realidade terrena e das suas contradições, mas é uma manifestação da fé inabalável de que o Redentor da estirpe de Adão, que esmagou a morte com a morte, é o Senhor da história, o Deus de amor que está sempre «connosco» e «para nós». A Páscoa é a certeza vivida de que Cristo é a Liberdade que nos torna livres, o fundamento, a espinha dorsal e o horizonte da nossa vida. «Sem mim nada podeis fazer» (Jo 15,5). Nenhuma circunstância, «aflição ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada» (Rom 8,35) pode separar os fiéis do amor de Cristo. Esta firme convicção inspira e reforça a nossa criatividade e a vontade de sermos «colaboradores de Deus» (1 Cor 3,9) no mundo. Temos a garantia de que, perante obstáculos intransponíveis e becos sem saída, onde o homem não consegue vislumbrar uma solução, há uma esperança e uma perspetiva. «Tudo posso naquele que me fortalece, Cristo» (Fil 4,13). Em Cristo ressuscitado sabemos que o mal, em todos os seus aspetos, não tem a última palavra sobre o caminho da humanidade.
Cheios de gratidão e de alegria pela honra e pelo grande valor que foi dado ao homem pelo Senhor da glória, entristecemo-nos com a violência multifacetada, a injustiça social e a violação dos direitos humanos no nosso tempo. «O luminoso anúncio do ressurreição» e o pregão «Cristo ressuscitou» ecoam hoje com o fragor das armas, com o grito de angústia das vítimas inocentes da violência bélica e dos refugiados, entre os quais se encontra um grande número de crianças inocentes. um grande número de crianças inocentes. Constatámos com os nossos próprios olhos os problemas durante a nossa recente visita à Polónia, onde se refugiou a maioria dos refugiados da Ucrânia. Partilhámos a dor com o fiel e corajoso povo ucraniano, que carrega uma cruz pesada. Rezamos e lutamos pela paz e pela justiça e por aqueles que dela carecem. É inconcebível para nós, cristãos, permanecer em silêncio face à degradação da dignidade humana. Juntamente com as vítimas dos conflitos armados, o «grande derrotado» das guerras é a humanidade, que, na sua longa história, não conseguiu abolir a guerra. A guerra não só não resolve os problemas, como cria problemas novos e mais complexos. Semeia divisão e ódio, alarga o fosso entre os povos. Acreditamos firmemente que a humanidade pode viver sem guerras e violência.
A Igreja de Cristo, pela sua natureza, atua como agente de paz. Não só reza pela «paz que vem do alto» e pela «paz do mundo inteiro», como também coloca em evidência a importância do esforço humano para a sua consolidação. O cristão é, antes de mais, «um agente de paz». Cristo engrandece os pacificadores, cuja luta é uma presença tangível de Deus no mundo e representa a paz "que ultrapassa todo o entendimento" (Fil 4,7), na "nova criação", no Reino bendito do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Espírito Santo. A nossa Igreja, como salienta oportunamente o texto do Patriarcado Ecuménico «Pela Vida do Mundo. Para um ethos social da Igreja Ortodoxa», «honra os mártires que ofereceram a sua vida pela paz, como testemunhas da força do amor, da beleza da criação na sua primeira e última forma e do ideal de uma conduta humana estabelecida por Cristo durante o seu ministério terrestre» (§ 44).
A Páscoa é uma festa de liberdade, de alegria e de paz. Celebrando com uma mente piedosa a Ressurreição de Cristo e vivendo nela também a nossa própria comum ressurreição, adorando com fé o grande mistério da Economia Divina e participando na «festa comum de todos», dirigimos da sempre crucificada e ressuscitada cadeira sagrada da Igreja de Constantinopla a todos vós, veneráveis irmãos e filhos amados, uma afetuosa saudação pascal, invocando sobre vós a graça e a misericórdia d'Aquele que matou o Hades e nos deu a vida eterna, Cristo, Deus de todos.

Fanar, Santa Páscoa de 2022
O Patriarca de Constantinopla
fervoroso intercessor de Cristo Ressuscitado
para todos vós.

Para ler na Igreja durante a Divina Liturgia da Festa da Santa Páscoa, depois do Santo Evangelho Evangelho.

Mensagem traduzida a partir da versão italiana.

Mensagem de Páscoa do Patriarca Kirill de Moscovo

Mensagem pascal de Sua Santidade Kirill, Patriarca de Moscovo e de Toda a Rússia

aos membros do episcopado, ao clero, aos monges e às monjas e a todos os fiéis
filhos e filhas da Igreja ortodoxa russa.

Eminências e Excelências Reverendíssimas, reverendos sacerdotes e diáconos,
veneráveis monges e monjas, caros irmãos e irmãs,

CRISTO RESSUSCITOU!

Ao dirigir-me a vós com esta saudação vivificante, congratulo-me cordialmente com todos vós pela grande e salvífica festa da Páscoa. Neste dia anunciado e santo, estamos cheios dessa alegria espiritual e imensa gratidão a Deus, sentimos tão claramente o poder e a profundidade do amor do Criador pelo homem, que por vezes é difícil encontrar outras palavras para expressar os nossos sentimentos, a não ser aquelas com as quais as mulheres "mirróforas" se apressaram a anunciar aos apóstolos o acontecimento maravilhoso do encontro com o Senhor.
Só podemos imaginar como foi difícil para os discípulos do Salvador acreditarem na realidade da ressurreição. Afinal, tinham visto há pouco tempo com os seus os seus próprios olhos a paixão e crucifixão do seu amado Mestre. Ainda estavam frescas as recordações de como o Seu Corpo morto e sem vida foi depositado no túmulo e como a gruta fria foi fechada com uma pedra pesada. E é então, contudo, que a dor é substituída pela afirmação da fé e do triunfo da vida, e as lágrimas de tristeza se transformam em lágrimas de alegria.
A experiência vivida de comunicação real com Cristo ressuscitado e a alegria sempre nova da Páscoa inspiraram e encorajaram os apóstolos, que foram até aos confins da terra a pregar o perdão dos pecados e a salvação que recebemos por meio do Senhor Jesus, ressuscitado do sepulcro. Sem medo das adversidades e das perseguições cruéis, sofrendo dificuldades e desventuras, os apóstolos testemunharam corajosa e incessantemente Cristo, o Vencedor da morte.
A Igreja já vive há dois milénios este anúncio da Ressurreição, procurando estendê-lo a todo aquele que vem ao mundo (Jo 1,9). À luz da Páscoa tudo resulta diferente: desaparecem o medo e o sentido de desespero, decorrentes da dor, da tristeza e das aflições da vida. Mesmo as circunstâncias difíceis deste tempo conturbado perdem a sua dureza ameaçadora na ótica da eternidade que nos foi dada.
Para dar testemunho do Salvador ressuscitado, não é de todo necessário deslocar-se ou ir para um lugar distante, como fizeram os apóstolos que difundiram o anúncio pascal por todo o mundo. Há muitas pessoas à nossa volta que precisam de um exemplo vivo da fé cristã que age por meio da caridade (Gl 5,6). Deus não exige de nós esforços insuportáveis. Ele apenas nos pede para mostrarmos amor uns para com os outros, recordando-nos que é assim que mostramos o nosso amor por Ele. Um sorriso simpático, a atenção e sensibilidade para com os que nos rodeiam, algumas palavras de consolo e apoio podem ser por vezes as coisas mais importantes que podemos fazer por amor a Cristo ressuscitado.
Hoje, quando o mundo é dilacerado por conflitos e contradições, enquanto o ódio, o medo e a inimizade prevalecem no coração de muitas pessoas, é particularmente importante não esquecer a própria vocação cristã e demonstrar um amor autêntico pelo próximo, que cura as feridas infligidas pelo mal e pela mentira. Não podemos ceder à tentação do inimigo do género humano, que procura destruir a  unidade bendita entre os cristãos ortodoxos. Rezo fervorosamente ao Senhor Jesus, o Vencedor da morte, e peço-vos também a vós que lhe eleveis orações intensas, para que cada obstáculo seja vencido, de tal modo que possa triunfar uma paz duradoura, e as feridas da divisão sejam curadas pela graça divina.
Ao desejar-vos a todos uma boa Páscoa, invoco sobre vós a bênção do Cristo Ressuscitado e desejo-vos, meus caros, a sempre nova e luminosa alegria pascal que nos fortalece na fé, na esperança e na caridade. Que pela misericórdia de Deus esta luz nunca se extinga nos nossos corações e que ela resplandeça sempre no mundo (Mt 5,14)! E que também nós, santificados incessantemente pela Palavra de Deus, pela leitura do Evangelho e pela graça divina que nos foi dada através da participação nos sacramentos da Igreja, possamos crescer constantemente no conhecimento do Senhor e sentir-nos fortalecidos no cumprimento dos Seus mandamentos, para que os homens, vendo a luz das nossas boas obras, glorifiquem o nosso Pai celeste (Mt 5,16) e testemunhem connosco que

CRISTO RESSUSCTOU VERDADEIRAMENTE!

+KIRILL,
Patriarca de Moscovo e de toda a Rus'
Páscoa do Senhor de 2022

Mensagem traduzida a partir da versão italiana.