30/05/2022

Ortodoxia ucraniana: distante de Moscovo

Após mais de três séculos de dependência do patriarcado de Moscovo, a Igreja ortodoxa ucraniana pró-russa também decidiu interromper as suas relações com o patriarcado russo.
Uma bofetada sem precedentes que Kirill procurou afincadamente evitar, mas que o seu apoio aberto à guerra de agressão tornou inevitável. Tratava-se apenas de escolher o momento.
A 27 de maio, a assembleia do clero e dos leigos das 53 dioceses da Ucrânia aprovou uma resolução de dez pontos que põe fim às remanescentes relações de dependência.

Uma ligação insustentável

Na abertura da reunião, o metropolita Onufriy reivindicou o coerente trabalho pastoral da sua Igreja desde a primeira assembleia de bispos no seguimento da independência, em 1992, que ficou para a história como a assembleia de Khasrkov. As hostilidades bélicas abertas pela Rússia a 24 de fevereiro colocaram a Igreja numa posição insustentável.
«Não percamos a nossa humanidade e a sua imagem de Deus, enquanto o mal invadiu os nossos corações, e não ponhamos em perigo a nossa fé; estas são as tarefas que temos de enfrentar hoje».
Onufriy reivindica a sua condenação imediata da guerra, os 13.000 refugiados acolhidos durante o conflito (dos 6 milhões que fugiram do país), os 20 veículos doados ao exército nacional, as 190 toneladas de ajuda. Apesar disso, a Igreja pró-russa, pelos seus laços canónicos com Moscovo, tem estado no centro de inúmeras suspeitas. Alguns padres foram acusados de ligações aos serviços secretos russos, dezenas de decisões administrativas tomaram igrejas e transferiram comunidades para a obediência da Igreja autocéfala, pelo menos 15 casos de confrontos físicos com os fiéis.
Finalmente o perigo mais grave: a proposta de lei 7204, apresentada a 22 de março, que proibiria as atividades da Igreja pró-russa em todo o território e nacionalizaria todos os seus bens, incluindo os grandes mosteiros das grutas de Kiev (não a propriedade, mas a gestão), Potchaev e Svyatogorsk. Acabar com a perseguição, pacificar o povo e discutir o futuro comum foram as instruções do metropolita à assembleia.

Dez pontos de distância

A resolução da assembleia conciliar articula-se em dez pontos:
- Condenação da guerra;
- Apelo a negociações entre a Ucrânia e a Rússia;
- «Manifestamos o nosso desacordo com a posição do Patriarca Kirill de Moscovo e de toda a Rússia sobre a guerra na Ucrânia»;
- Alterações aos estatutos internos;
- Apreço pela forma como a Igreja geriu os acontecimentos;
- Pedido do rito do crisma sagrado (próprio das Igrejas autocéfalas);
- Delegação de questões sinodais nos bispos durante a lei marcial;
- Pedido de abertura de paróquias ucranianas nos locais de residência dos refugiados no estrangeiro (6 milhões);
- «Consciente da sua responsabilidade perante Deus, a assembleia conciliar exprime o profundo pesar pela falta de unidade na ortodoxia ucraniana. A assembleia considera a presença do cisma como uma ferida profunda e dolorosa no corpo da Igreja. Consideramos lamentável que as últimas decisões do patriarca de Constantinopla na Ucrânia que levaram à criação da Igreja Ortodoxa da Ucrânia (Igreja Ortodoxa Ucraniana é o título da Igreja pró-russa) só tenham contribuído para a confusão, provocando confrontos físicos. Mas mesmo em circunstâncias tão críticas, a assembleia conciliar não perde a esperança de renovar o diálogo». Para que isto aconteça, pede-se que se ponha fim à tomada das igrejas e à transferência forçada de paróquias, que se reconheça que o estatuto da Igreja pró-russa tem um grau de autonomia superior ao da Igreja autocéfala, que se inicie um debate com vista ao reconhecimento da canonicidade dos hierarcas e dos padres da Igreja autocéfala;
- Trabalhar por uma comunicação fraterna, pelo fim da guerra e pela reconciliação com os inimigos.

O sonho de um patriarcado único

Agora o campo de confronto situa-se totalmente no interior da ortodoxia ucraniana. A Igreja pró-russa não pode renunciar ao diálogo com a Igreja autocéfala do metropolita Epifanij, mas esta última só será plenamente legitimada por um confronto positivo com a outra parte.
Reabre-se uma possibilidade espantosa, cultivada como um sonho por gerações de crentes: o de um único patriarcado de Kiev capaz não só de unificar as comunidades ortodoxas, mas também de incluir as comunidades greco-católicas.
A unidade de rito, de língua e de história permitiria uma jurisdição dupla e convivial: os ortodoxos em comunhão com Constantinopla e os católicos em comunhão com Roma. O que tem estado no centro do cisma que está a abalar as Igrejas ortodoxas e colocar dificuldades ao diálogo ecuménico entre as Igrejas cristãs, pode converter-se no início de uma experiência surpreendente: uma dupla obediência eclesial na fronteira entre o Oriente e o Ocidente, a plena superação do temido "uniatismo".
O cristianismo, ferido por uma justificação insensata da guerra, poderia inventar um gesto profético de extraordinária densidade para a futura concórdia no continente. A capacidade visionária do papa Francisco e a sua excelente relação com Bartolomeu de Constantinopla são necessárias para a iniciativa. As paixões atuais ainda não o puseram em foco, mas esta possibilidade merece ser totalmente percorrida.
Mais difícil é prever o que poderá acontecer em Moscovo. É difícil imaginar que Kirill possa sobreviver à perda da Ucrânia, apesar da expectativa visível de unir os territórios do Donbass, para além do da Crimeia.
Seria o fim definitivo não só do Russkiy mir (mundo russo), mas também da reivindicação hegemónica de Moscovo relativa à Ortodoxia e à hipótese da "terceira Roma".
Tudo isto não invalidaria o papel relevante de Moscovo na Ortodoxia nas próximas décadas, nem a sua tarefa decisiva de sustentar a unidade da Rússia face ao perigo de uma desagregação desastrosa.

Lorenzo Prezzi
Settimana News (29 de maio de 2022).

12/05/2022

Não à guerra em nome de Deus

Entrevista de Ingo Brüggenjürgen ao cardeal Kurt Koch, presidente do Conselho Pontifício para a Unidade dos cristãos

Senhor Cardeal, se tivesse de chegar a uma conclusão provisória, como é que se encontra atualmente a unidade dos cristãos?

Depende dos cristãos de que estamos a falar. Temos duas secções no nosso Conselho Pontifício, a secção oriental e a secção ocidental. Isto remonta aos vários cismas, primeiro nos séculos V e XI entre o Oriente e o Ocidente, e às divisões do século XVI na Igreja do ocidente. Ambos os diálogos são muito diferentes. Hoje, naturalmente, na linha da frente está o diálogo com a Ortodoxia, que se encontra numa situação muito difícil devido à guerra na Ucrânia.
 
O senhor disse que muitas pessoas olham para a Ucrânia com grande preocupação. Há cristãos de ambos os lados, assim como líderes eclesiais de um e de outro lado que mandam os cristãos combater. E hoje há cristãos a lutar contra outros cristãos; há mesmo ortodoxos a lutar contra outros ortodoxos. Esta é uma mensagem desoladora para o cristianismo em todo o mundo.

É, de facto, uma tragédia particular, precisamente porque o Patriarcado ortodoxo russo tem repetido continuamente que se sente obrigado a proteger os cristãos e que protesta contra a sua perseguição. E hoje temos cristãos a lutar contra cristãos; de facto, temos mesmo ortodoxos que lutam contra ortodoxos. Esta é uma mensagem trágica para o cristianismo em todo o mundo.

Que possibilidades oferece a diplomacia cristã? A diplomacia, especialmente na Igreja Católica, tem séculos de experiência.

Sim, é muito importante. Acima de tudo, que existe um acordo segundo o qual estamos ao serviço da paz. Portanto, como disse o papa Francisco, o Deus cristão é um Deus de paz e não um Deus de guerra. E eu não posso favorecer e apoiar a guerra em nome deste Deus cristão. É uma posição não cristã.

Muitos cristãos tinham alimentado grandes esperanças após o encontro entre o patriarca Kirill e o papa em 2016. Abriu-se o diálogo. O senhor também trabalhou nos bastidores para que houvesse uma conversa por vídeo com esta finalidade. Na situação atual, ainda se pode falar realmente de diálogo?

O diálogo nunca deve ser interrompido, porque é a única forma de dar a conhecer a própria posição. E o papa Francisco deixou muito claro neste vídeo que estava grato pelo encontro. Ele acrescentou: não somos clérigos de Estado, somos pastores do povo e, portanto, não temos outra mensagem senão a de pôr fim a esta guerra. Foi uma mensagem muito clara. Não posso julgar se o patriarca a entendeu deste modo.

Ainda há esperança de que este diálogo dê frutos?

Nunca perco a esperança de que dê frutos. Mas penso que temos de discutir finalmente um problema que sempre deixámos à margem dos diálogos: é o problema da relação entre a Igreja e o Estado. Sobre este ponto, há uma visão completamente diferente. No Ocidente tivemos de aprender com os desenvolvimentos históricos e aprendemos mesmo que a relação adequada entre Igreja e Estado é a separação, sabendo-se ambos os lados parceiros com igual dignidade.
Esta é uma visão desconhecida no Oriente, na Ortodoxia. Aí fala-se de uma sinfonia entre Igreja e Estado. E esta visão está muito enraizada. Penso que Oeldemann, diretor do Instituto Ecuménico de Paderborn, declarou muito claramente, num artigo publicado pela KNA [agência de notícias católica alemã], que este conceito, na sequência dos desenvolvimentos da guerra na Ucrânia, levanta questões.

Há, portanto, ainda muito trabalho a ser feito. Uma questão que lhe é muito cara é a unidade dos cristãos. Como é que a vê? Não se sente por vezes desencorajado quando se encontra numa viagem com uma duração tão longa e se dá conta de que não se está realmente a fazer progressos?

Quando aceitei esta missão há dez anos, escolhi um patrono especial, Moisés. Porque Moisés conduziu o seu povo por todo o lado, mesmo através do deserto, e não tinha outra tarefa senão conduzi-lo à terra prometida. Mas ele próprio nunca pôde entrar nela. No entanto, nunca desistiu. E eu penso que a terra prometida que está diante de nós é a unidade dos cristãos. Não creio que possa vê-la ao longo da minha vida. Mas isso não significa que devamos desistir. Não há outra alternativa. A unidade dos cristãos é vontade do Senhor. E temos de lhe ser obedientes, para tentarmos reencontrar na história esta unidade rompida.
Não podemos fazer esta unidade sozinhos. É significativo que Jesus não peça unidade na sua oração sacerdotal no capítulo 17 do Evangelho de João, mas reze por ela. E assim não podemos fazer nada melhor do que rezar e lutar por esta unidade, sabendo que é um dom a receber. Mas investindo todas as nossas forças e depois sentindo-nos, em sentido evangélico, servos inúteis.

Há também o dito de Cristo «Somos um só». O senhor escreveu mesmo no seu brasão que Cristo deve ter o primado sobre todas as coisas. Porque é que os cristãos estão, por assim dizer, tão relutantes em se moverem?

Tenho a impressão de que nem todos os cristãos querem realmente a unidade ou que têm ideias muito diferentes acerca dela. Penso que existem diferentes visões da unidade. A Igreja católica considera que temos de encontrar a unidade na fé, nos sacramentos e nos ministérios. Existem, além disso, outras ideias completamente diferentes. Um número considerável de Igrejas que emergiram da Reforma consideram que temos de reconhecer reciprocamente todas as realidades eclesiais que existem como Igrejas. A soma de todas estas Igrejas existentes constituiria a única Igreja de Cristo.
São ideias muito diferentes e é, por isso, que temos de as considerar de um modo completamente novo: o que é que realmente queremos? Qual é o objetivo? Por exemplo, se estiver no aeroporto de Frankfurt e não souber para onde quer ir, não se surpreenderá se aterrar em Madrid e não em Roma, e isso é realmente uma pena. Penso, da mesma forma, que temos de considerar de novo qual é o objetivo. Para onde queremos ir? Só assim podemos programar os próximos passos.

O que é que pode fazer mais a Igreja Católica, especialmente no que diz respeito à unidade? A mudança é sempre muito importante para nós. Onde é que podemos porventura mudar, para que possa haver uma reaproximação mais decisiva?

A Igreja Católica ainda tem muito a aprender sobre o que significa viver a unidade na diversidade. E as outras igrejas, creio eu, precisam de pensar no que significa procurar a unidade na sua diversidade, neste equilíbrio permanente. Blaise Pascal escreveu nos seus Pensamentos (Pensées): «A unidade que não depende da multiplicidade é ditadura. A multiplicidade que não depende da unidade é anarquia. Temos constantemente de procurar e encontrar o caminho entre a ditadura e a anarquia».

Settimana News (10 de maio de 2022).