12/05/2022

Não à guerra em nome de Deus

Entrevista de Ingo Brüggenjürgen ao cardeal Kurt Koch, presidente do Conselho Pontifício para a Unidade dos cristãos

Senhor Cardeal, se tivesse de chegar a uma conclusão provisória, como é que se encontra atualmente a unidade dos cristãos?

Depende dos cristãos de que estamos a falar. Temos duas secções no nosso Conselho Pontifício, a secção oriental e a secção ocidental. Isto remonta aos vários cismas, primeiro nos séculos V e XI entre o Oriente e o Ocidente, e às divisões do século XVI na Igreja do ocidente. Ambos os diálogos são muito diferentes. Hoje, naturalmente, na linha da frente está o diálogo com a Ortodoxia, que se encontra numa situação muito difícil devido à guerra na Ucrânia.
 
O senhor disse que muitas pessoas olham para a Ucrânia com grande preocupação. Há cristãos de ambos os lados, assim como líderes eclesiais de um e de outro lado que mandam os cristãos combater. E hoje há cristãos a lutar contra outros cristãos; há mesmo ortodoxos a lutar contra outros ortodoxos. Esta é uma mensagem desoladora para o cristianismo em todo o mundo.

É, de facto, uma tragédia particular, precisamente porque o Patriarcado ortodoxo russo tem repetido continuamente que se sente obrigado a proteger os cristãos e que protesta contra a sua perseguição. E hoje temos cristãos a lutar contra cristãos; de facto, temos mesmo ortodoxos que lutam contra ortodoxos. Esta é uma mensagem trágica para o cristianismo em todo o mundo.

Que possibilidades oferece a diplomacia cristã? A diplomacia, especialmente na Igreja Católica, tem séculos de experiência.

Sim, é muito importante. Acima de tudo, que existe um acordo segundo o qual estamos ao serviço da paz. Portanto, como disse o papa Francisco, o Deus cristão é um Deus de paz e não um Deus de guerra. E eu não posso favorecer e apoiar a guerra em nome deste Deus cristão. É uma posição não cristã.

Muitos cristãos tinham alimentado grandes esperanças após o encontro entre o patriarca Kirill e o papa em 2016. Abriu-se o diálogo. O senhor também trabalhou nos bastidores para que houvesse uma conversa por vídeo com esta finalidade. Na situação atual, ainda se pode falar realmente de diálogo?

O diálogo nunca deve ser interrompido, porque é a única forma de dar a conhecer a própria posição. E o papa Francisco deixou muito claro neste vídeo que estava grato pelo encontro. Ele acrescentou: não somos clérigos de Estado, somos pastores do povo e, portanto, não temos outra mensagem senão a de pôr fim a esta guerra. Foi uma mensagem muito clara. Não posso julgar se o patriarca a entendeu deste modo.

Ainda há esperança de que este diálogo dê frutos?

Nunca perco a esperança de que dê frutos. Mas penso que temos de discutir finalmente um problema que sempre deixámos à margem dos diálogos: é o problema da relação entre a Igreja e o Estado. Sobre este ponto, há uma visão completamente diferente. No Ocidente tivemos de aprender com os desenvolvimentos históricos e aprendemos mesmo que a relação adequada entre Igreja e Estado é a separação, sabendo-se ambos os lados parceiros com igual dignidade.
Esta é uma visão desconhecida no Oriente, na Ortodoxia. Aí fala-se de uma sinfonia entre Igreja e Estado. E esta visão está muito enraizada. Penso que Oeldemann, diretor do Instituto Ecuménico de Paderborn, declarou muito claramente, num artigo publicado pela KNA [agência de notícias católica alemã], que este conceito, na sequência dos desenvolvimentos da guerra na Ucrânia, levanta questões.

Há, portanto, ainda muito trabalho a ser feito. Uma questão que lhe é muito cara é a unidade dos cristãos. Como é que a vê? Não se sente por vezes desencorajado quando se encontra numa viagem com uma duração tão longa e se dá conta de que não se está realmente a fazer progressos?

Quando aceitei esta missão há dez anos, escolhi um patrono especial, Moisés. Porque Moisés conduziu o seu povo por todo o lado, mesmo através do deserto, e não tinha outra tarefa senão conduzi-lo à terra prometida. Mas ele próprio nunca pôde entrar nela. No entanto, nunca desistiu. E eu penso que a terra prometida que está diante de nós é a unidade dos cristãos. Não creio que possa vê-la ao longo da minha vida. Mas isso não significa que devamos desistir. Não há outra alternativa. A unidade dos cristãos é vontade do Senhor. E temos de lhe ser obedientes, para tentarmos reencontrar na história esta unidade rompida.
Não podemos fazer esta unidade sozinhos. É significativo que Jesus não peça unidade na sua oração sacerdotal no capítulo 17 do Evangelho de João, mas reze por ela. E assim não podemos fazer nada melhor do que rezar e lutar por esta unidade, sabendo que é um dom a receber. Mas investindo todas as nossas forças e depois sentindo-nos, em sentido evangélico, servos inúteis.

Há também o dito de Cristo «Somos um só». O senhor escreveu mesmo no seu brasão que Cristo deve ter o primado sobre todas as coisas. Porque é que os cristãos estão, por assim dizer, tão relutantes em se moverem?

Tenho a impressão de que nem todos os cristãos querem realmente a unidade ou que têm ideias muito diferentes acerca dela. Penso que existem diferentes visões da unidade. A Igreja católica considera que temos de encontrar a unidade na fé, nos sacramentos e nos ministérios. Existem, além disso, outras ideias completamente diferentes. Um número considerável de Igrejas que emergiram da Reforma consideram que temos de reconhecer reciprocamente todas as realidades eclesiais que existem como Igrejas. A soma de todas estas Igrejas existentes constituiria a única Igreja de Cristo.
São ideias muito diferentes e é, por isso, que temos de as considerar de um modo completamente novo: o que é que realmente queremos? Qual é o objetivo? Por exemplo, se estiver no aeroporto de Frankfurt e não souber para onde quer ir, não se surpreenderá se aterrar em Madrid e não em Roma, e isso é realmente uma pena. Penso, da mesma forma, que temos de considerar de novo qual é o objetivo. Para onde queremos ir? Só assim podemos programar os próximos passos.

O que é que pode fazer mais a Igreja Católica, especialmente no que diz respeito à unidade? A mudança é sempre muito importante para nós. Onde é que podemos porventura mudar, para que possa haver uma reaproximação mais decisiva?

A Igreja Católica ainda tem muito a aprender sobre o que significa viver a unidade na diversidade. E as outras igrejas, creio eu, precisam de pensar no que significa procurar a unidade na sua diversidade, neste equilíbrio permanente. Blaise Pascal escreveu nos seus Pensamentos (Pensées): «A unidade que não depende da multiplicidade é ditadura. A multiplicidade que não depende da unidade é anarquia. Temos constantemente de procurar e encontrar o caminho entre a ditadura e a anarquia».

Settimana News (10 de maio de 2022).