31/12/2023

A diaconia do diálogo e da unidade



Lectio magistralis proferida por Bartolomeu I, Patriarca de Constantinopla, a 23 de novembro de 2023, na abertura do Ano Letivo 2023/2024 da Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional, quando lhe foi conferido o Doutoramento honoris causa em Sagrada Teologia.




Ex.cia Rev.ma Arcebispo Metropolita de Nápoles, D. Domenico Battaglia, Magno Chanceler do Instituto,
Ἱερώτατε Μητροπολίτα Ἰταλίας καί Μελίτης, κ. Πολύκαρπε*,
Ilustríssimo Magnífico Reitor, Prof. Francesco Asti, Distintas Autoridades Académicas,
Eminências, Excelências, Todas as Autoridades, Caríssimos Convidados,
Irmãos e Irmãs em Cristo,

Com sentimentos de verdadeira gratidão, estamos mais uma vez nesta esplêndida e histórica cidade de Nápoles, para receber um prestigiado reconhecimento desta Pontifícia Faculdade de Teologia, pelo nosso compromisso e contributo no diálogo inter-religioso e no movimento ecuménico.
Agradecendo desde já a vossa atenção, desejamos, no entanto, aceitá-lo não tanto pela nossa Modéstia, mas pelo compromisso que a Igreja de Constantinopla, o Patriarcado Ecuménico, tem desenvolvido ao longo dos séculos para manter e consolidar a comunhão canónica entre as Igrejas Irmãs que constituem a Igreja Ortodoxa, ou seja, os antigos Patriarcados e as Igrejas Autocéfalas. Mas também pelo compromisso assumido na procura da recomposição da unidade cristã visível entre as várias Igrejas do Oriente e do Ocidente.
Esta diaconia própria da Grande Igreja de Cristo exprime a sua visão e missão profética e essencial ao longo dos séculos, facto que a nossa Modéstia assumiu inteiramente no seu ministério patriarcal e espiritual, que, por benevolência de Deus, se prolonga há já mais de 32 anos.

Um esplêndido mosaico

A história eclesiástica do primeiro milénio é certamente uma história de uma riqueza e de uma produção teológica excecionais, na qual – graças às formulações dos grandes Concílios Ecuménicos e Locais e ao surgimento da teologia patrística – a cristologia, a eclesiologia, a fé e oração da Igreja, bem como a antropologia cristã encontram o seu desenvolvimento fundamental, que estará na base da vida da Igreja até aos nossos dias, no âmbito do grande conceito de Tradição viva, que de certo modo realiza a profecia bíblica e o anúncio do Salvador, tornando a sua mensagem «sempre a mesma e sempre nova» ao longo dos séculos.
A esse respeito, da Igreja dos primeiros séculos chega até nós hoje a notável expressão do grande Padre Santo Atanásio, Patriarca de Alexandria, que afirmava existir «ἐξ ἀρχῆς παράδοσις καί διδασκαλία καί πίστις τῆς καθολικῆς Ἐκκλησίας, ἥν μέν Κύριος ἔδωκεν, οἱ δέ Ἀπόστολοι ἐκήρυξαν, καί οἱ πατέρες ἐφύλαξαν. Ἐν ταὐτῃ γάρ ἡ Ἐκκλησία τεθεμελίωται» – «desde o início tradição, doutrina e fé da Igreja Católica, que o Senhor entregou, os Apóstolos anunciaram e os Padres conservaram. Nelas, portanto, foi fundada a Igreja».
Este processo não foi indolor na história eclesiástica, devido a divisões provocadas muitas vezes pelo uso de diferentes categorias de pensamento e de expressões linguísticas frequentemente pouco inclusivas. O distanciamento entre as Famílias Cristãs, causado por diversos fatores não só eclesiásticos, mas também culturais, e ainda pelas perturbações políticas do tempo, provocou uma divisão que pesou não só na esfera propriamente eclesiástica, ou melhor, eclesiológica, mas sobretudo na acutilância do anúncio do Evangelho, cujas consequências favoreceram o aparecimento de novas identidades religiosas.
Este fervor e este fermento de pensamento e de atitude já se pode observar na Comunidade de Jerusalém e no Concílio dos Apóstolos. No entanto, a riqueza teológica e as consequentes divisões que provocaram cismas e heresias na história cristã do primeiro milénio não ofuscam a própria identidade da Igreja, na qual o dito paulino continua a ser um dos eixos fundamentais: «Já não há judeu nem grego; já não há escravo nem livre; já não há homem nem mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus» (Gal 3,28).
Não se trata apenas da autoconsciência de sermos um em Cristo, mas sobretudo de um mandato preciso do Senhor a sermos um – «Para que todos sejam um. Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, que também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que tu me mandaste» (Jo 17,21) –, representação de um esplêndido mosaico em que cada pedra tem o seu preciso lugar.
Mas se uma pedra se danifica e deteriora o mosaico, ou melhor, deteriora o que nele está representado (Escritura, Eucaristia, Igreja), essa pedra não deixa de pertencer ao conjunto do mosaico. Isso significa que mesmo as Comunidades que surgiram depois dos Concílios de Éfeso e Calcedónia, ainda que em cisma ou heresia, continuam a desenvolver a consciência de pertencerem ao único mosaico.
Por outras palavras, a divisão, o cisma ou a heresia, mesmo que privem da comunhão, não privam da pertença à única Igreja de Cristo, da mesma forma que a doença de um órgão do corpo não torna o próprio órgão estranho ao corpo.

Divisões e consciência da unidade

A Grande Igreja Bizantina, nos séculos VIII e IX e depois no século XI, no auge de um confronto entre o Oriente e o Ocidente, mais sociocultural do que eclesiológico, ainda que muitas vezes polémico, não suscita dúvidas quanto à pertença de todos ao único Corpo do Senhor.
Não obstante as excomunhões entre o Cardeal Humberto de Silva Cândida, legado do Papa Leão IX, e o Patriarca Miguel I Cerulário, a 16 de julho de 1054, a consciência de ser «Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica» continua a ser comum.
Esta consciência, apesar do desenvolvimento de uma eclesiologia diferente, de tipo mais jurisdicional no Ocidente e de tipo mais dogmático e canónico-disciplinar no Oriente, será abalada a 12 de abril de 1204 com o saque de Constantinopla e a entronização de Patriarcas latinos em Constantinopla, Antioquia e Jerusalém. Mas só a polémica decorrente do vislumbrar de costumes diferentes e a absolutização das suas próprias tradições é que levaram as Igrejas – como escreveu o teólogo Yves Congar – «a verem-se divididas sem nunca se terem formalmente separado».
Estas divisões e implicações formais não resultaram, contudo, numa perda de consciência da identidade cristã de pertença à única Igreja de Cristo. Graças a esta consciência, as tentativas unionistas do Concílio de Lião, em 1274, e do Concílio de Ferrara-Florença, nos anos 1431-1443, para além dos resultados alcançados, não podem ser consideradas historicamente como fenómenos de “englobamento”, antecipações da teoria do “regresso” do Oriente a Roma, fenómeno aliás então desconhecido, nem mesmo uma mera atitude política de defesa dos Imperadores Bizantinos face ao avanço dos Turcos.
Não podemos certamente negar uma motivação resultante da situação contingente. Contudo, a participação das Igrejas nestes Concílios manifesta concretamente o reconhecimento a priori do outro na sua identidade eclesiológica comum. Até as polémicas e os argumentos então acaloradamente debatidos continuam a ser um elo entre o Oriente e o Ocidente.

O diálogo torna-se monólogo

A incapacidade dos cristãos da época, sobretudo as hierarquias eclesiásticas, de encontrarem soluções para a diferente abordagem do pensamento teológico, favoreceu certamente, séculos mais tarde, o aparecimento de uma nova “identidade” eclesial, saída primeiro da Reforma Protestante e depois da Contrarreforma e das suas consequências.
Temos de reconhecer que existe até à Contrarreforma alguma forma de diálogo (δια-λόγος) entre as grandes Famílias Cristãs da época.
A Reforma e a Contrarreforma não podem ser consideradas uma problemática ou uma situação dinâmica e contingente da Igreja do Ocidente. O afirmar do valor “absoluto” da Igreja Romana na Cristandade altera os pressupostos da sinfonia e sinodalidade da Igreja do primeiro Milénio e abre um sulco intransponível também no que respeita ao Oriente.
Lutero e os Reformadores a princípio viram com bons olhos a parte da Cristandade não sujeita ao bispo de Roma e procuraram uma ligação com a Cristandade Oriental, no pressuposto da única pertença à igreja. Mas os argumentos apresentados ao Patriarca de Constantinopla e as observações formuladas pelos teólogos orientais e pelo Patriarca Germanos II Trános aos Teólogos de Tubinga não satisfazem os Reformadores.
Os encontros entre a Ortodoxia e a Reforma exprimiram, mesmo assim, uma vontade de escuta. Temos os exemplos do Patriarca Cirilo Lukaris ou as páginas esplêndidas escritas sobre a relação dos Pastores Luteranos Alemães com o Czar da Rússia Ivan, o Terrível. A Confessio Augustana chega ao Oriente traduzida em grego, mas o Oriente responde com a sua fidelidade à Tradição da Igreja Indivisa.
A Contrarreforma, para conter a onda protestante, absolutiza a sua própria presença, e o diálogo torna-se monólogo (μόνος-λόγος). O mosaico inicial parte-se, e as pedras – os vínculos entre as Igrejas – embora enfraquecidas, já não são reconhecidas como parte da mesma obra de Deus.
Surge assim a teoria do “regresso” que provocou páginas trágicas nas relações entre o Oriente e o Ocidente: o Uniatismo. Este fenómeno, segundo o qual uma Igreja Oriental local, conservando toda a sua herança litúrgica e soteriológica, reconhece a supremacia do Romano Pontífice (Ucrânia – União de Brest-Litovsk, 1596; Ruténia – União de Užhorod, 1646; Transilvânia – União de Alba Júlia, 1698) marcará uma das páginas mais negras da história eclesiástica do segundo milénio, cujas consequências pesaram nas relações entre as Igrejas quase até aos nossos dias.

Unidade sem “regresso”

O monólogo impede o encontro com o outro, o crescimento e a capacidade de saborear todos os dons que Deus concedeu à Igreja. Contudo, mesmo esta situação de isolamento produziu alguns frutos, cujos resultados serão visíveis no século XX, na época do Ecumenismo e do encontro.
Os Bispos de Roma, no século XIX, voltam a procurar uma aproximação ao Oriente, através das cartas aos Patriarcas Orientais, enviadas pelo Papa Pio IX em 1848 e, mais tarde, pelo Papa Leão XIII em 1895. A resposta à primeira carta é expressa na Encíclica dos Patriarcas Orientais, que constitui um verdadeiro tratado teológico que, mais tarde, lançará as bases para as Encíclicas Patriarcais de 1902, 1920 e 1952 sobre a unidade das Igrejas Cristãs.
Nesta Encíclica, é expressa de forma clarividente a primeira hipótese de diálogo teológico:

«A unidade deve ser realizada sem qualquer regresso – como diz Sua Santidade (Pio IX) –, mas sem pressa... depois de consultas com os bispos, teólogos e doutores mais sábios, religiosos que amam da verdade e prudentes, que se encontram atualmente, graças à boa providência de Deus, em todas as nações do Ocidente».

Na Encíclica, os Patriarcas dirigem-se a Pio IX chamando-lhe, em todo o caso, «Bispo da Antiga Roma», mantendo no Oriente a consciência de única pertença que nem o erro pode destruir: «A Igreja de Cristo não pode ser dividida!».
A própria resposta do Patriarca Anthimos IV a Leão XIII tem elementos dignos de nota: entre eles está o seu apelo aos «povos dos gloriosos países do Ocidente que amam a Cristo», para os convidar «não a regressar», mas «a redescobrir a salutar fé de Cristo, reta em todas as coisas e em conformidade com a Sagrada Escritura e as Tradições Apostólicas, nas quais se baseia o ensinamento dos divinos Padres e dos Sete Concílios Ecuménicos».

A viragem ecuménica do século XX

Sem este breve excursus histórico, não podemos compreender o alcance para toda a Igreja dos acontecimentos do século XX. Um conhecido teólogo católico, o P. Le Guillon, dizia que o Movimento Ecuménico veio simplesmente cumprir uma vocação proveniente de dentro do próprio mundo ortodoxo.
Referia-se às Encíclicas Patriarcais, a primeira de 1902, na qual o Patriarcado Ecuménico convidava as Igrejas Ortodoxas a uma maior cooperação entre si e a «perguntarem-se se é chegado o tempo de uma reunião preparatória para uma aproximação recíproca e amigável» às outras «Vinhas do Cristianismo», «fazendo uso de concessões, onde for lícito, não considerando como condição indispensável a rigidez e a uniformidade estática em coisas não substanciais, habituada (a Igreja) pela sua vida colegial à unidade na variedade», e depois a segunda Encíclica de 1920, dirigida «a todas as Igrejas de Cristo em toda a parte», que se pode dizer, com razão, que representa o primeiro manifesto do ecumenismo contemporâneo, claro e rico em propostas.
Redigida pelos teólogos da reputada Faculdade de Teologia de Chalki (Constantinopla), dirige um convite às Igrejas a estabelecerem uma «κοινωνία τῶν Ἐκκλησιῶν» – uma comunhão das Igrejas – e convida as Igrejas a colaborarem para eliminarem a desconfiança e reforçarem o amor cristão, de modo a poderem depois chegar a reuniões de cariz dogmático. Propõe, assim, um Conselho de Igrejas, na esteira da já constituída Sociedade das Nações. A propósito, recordamos que o Conselho Mundial das Igrejas nascerá 28 anos depois, em Amesterdão, em cuja assembleia apenas participarão, pela Igreja Ortodoxa, o Patriarcado Ecuménico e a Igreja Russa da Diáspora. Em 1925, em Estocolmo, no primeiro Congresso Mundial da Comissão «Vida e Ação», estarão presentes as Igrejas de Constantinopla, Alexandria, Jerusalém, Roménia, Bulgária, Grécia e Chipre, tal como em Oxford, em 1937.
Não podemos deixar de mencionar a figura do nosso grande predecessor, o Patriarca Atenágoras, um visionário, um sonhador da unidade das Igrejas de Cristo, o profeta do «diálogo do amor». A sua famosa Encíclica de 1952 convocava as Igrejas Ortodoxas para encontrarem modos e meios de colaboração entre as Igrejas e para participarem no Conselho Mundial das Igrejas.
O impulso, na sequência da convocação do II Concílio do Vaticano, com vista à preparação um futuro Concílio da Igreja Ortodoxa através das Conferências Pan-Ortodoxas de Rodes (1961, 1963, 1964), o encontro com o Papa Paulo VI em Jerusalém, em Roma e em Constantinopla, a anulação recíproca das “excomunhões”, todos estes elementos caraterizaram o seu patriarcado, mas também abriram um caminho sem regresso para o encontro de todas as Igrejas Cristãs.

Igrejas irmãs

O primeiro resultado de todos estes acontecimentos foi o reconhecimento como «Igrejas Irmãs» (no início parecia mais oportuno chamarem-se «Igrejas amigas») e o início dos grandes diálogos teológicos: a) com a Igreja Católica Romana; b) com as Antigas Igrejas Orientais; c) com a Igreja Veterocatólica e a Igreja Anglicana; d) com a Igreja Luterana e as Igrejas Reformadas. Os anos 70 e 80 foram ricos deste ponto de vista.
Ao mesmo tempo, também vieram à luz vários diálogos bilaterais. O Conselho Mundial das Igrejas também desenvolveu numerosos temas comuns, de caráter social, com os quais, no entanto, a Igreja Ortodoxa não estava muitas vezes plenamente de acordo.
A isto acresce o grande impacto que a Escola de Paris teve no encontro dos grandes teólogos da Diáspora com o Ocidente, entre os quais N. Nissiotis, P. Nellas, P. Evdokimov, A. Schmemann, J. Meyendorff, O. Clement, D. Stanilaoe, D. Popescu, representantes da síntese teológica neopatrística, mas também G. Florovsky, P. Florensky, S. Bulgakov, V. Lossky, P. Afanassiev, C. Yannaras e outros.
Infelizmente, o século XX, tal como viu a sua história geral ser prenúncio de grandes descobertas e melhorias da vida humana, foi também um século de grandes catástrofes humanas, designadamente guerras mundiais, conflitos e genocídios em muitas partes do mundo.
Do mesmo modo, a vida das Igrejas, revigorada pelo novo caminho da história da teologia e do diálogo, também teve de enfrentar novos desafios, abrandamentos bruscos e, por vezes, até conflitos ditados pelo nacionalismo, por um certo sectarismo, pela crise económica, por uma liberdade – após a queda do muro – que, em vez de abrir os corações e as mentes, favoreceu medos e rivalidades entre os cristãos. Até os próprios diálogos teológicos foram repensados. Contudo, voltámos pessoalmente a chamar a atenção de todos para o lema: «persistência e paciência» (Creta 2009).

Um novo início

Caros Amigos,

Pela graça do Senhor, estamos sentados no Trono Apostólico e Patriarcal de Constantinopla há mais de 30 anos e, seguindo também o exemplo luminoso dos nossos bem-aventurados Predecessores, nunca duvidámos de que o diálogo é o único caminho que o Senhor nos indica, se quisermos ser seus discípulos: «para que todos sejam um» (Jo 17,21).
A Santa e Grande Igreja de Cristo, o Patriarcado Ecuménico, não possui grandes recursos: «A fragilidade dos recursos humanos e materiais de Constantinopla, o seu sufoco e os seus sofrimentos nas atuais circunstâncias históricas são o que garante a perenidade da sua imparcialidade e aumenta o seu prestígio». Como diz o Senhor ao apóstolo Paulo: «O meu poder manifesta-se plenamente na fraqueza» (2 Cor 12,9).
Foi com esta certeza que encarámos o papel que os Concílios Ecuménicos confiaram à Igreja de Constantinopla no seio da Ortodoxia e no mundo cristão. É por isso que nunca duvidámos da importância do diálogo, promovendo e tomando iniciativas relevantes para apoiar o movimento ecuménico, contribuindo para o crescimento do Conselho Mundial de Igrejas e da Conferência das Igrejas Europeias.
Não menos importante, àqueles que se apresentam como zelotes e defensores da Ortodoxia, proclamámos que

«A Igreja Ortodoxa não precisa nem de fanatismo nem de intolerância para se proteger. Quem acredita que a Ortodoxia possui a verdade não teme o diálogo, porque a verdade nunca é posta em perigo pelo diálogo. Pelo contrário, quando todos hoje procuram superar as suas diferenças através do diálogo, a Ortodoxia não pode proceder com intolerância e fanatismo. Tende plena confiança na vossa Igreja Mãe. Ela preservou a Ortodoxia de modo inalterado ao longo dos séculos e transmitiu-a a outros povos. Ainda hoje se esforça, em condições difíceis, para manter a Ortodoxia vital e venerável em todo o mundo» (Domingo da Ortodoxia 2010).

Quatro axiomas

O nosso papel patriarcal tem-se expressado em quatro axiomas principais: 1) Unidade visível da Igreja Ortodoxa; 2) Diálogo e colaboração com todas as Igrejas Cristãs; 3) Diálogo e colaboração com as religiões do mundo e principalmente com o Judaísmo e o Islão; 4) Justiça, Paz, Unidade da Família Humana e Salvaguarda da Criação.

1) Unidade visível da Igreja Ortodoxa

Desde a nossa elevação ao Trono Ecuménico, reunimos várias Synaxis dos Primazes das Igrejas Ortodoxas, para regular temas de interesse comum e resolver incompreensões com vista a um testemunho comum no mundo.
O nosso papel de Patriarca Ecuménico, a despeito daqueles que gostariam de nos atribuir o título de Papa do Oriente, de acordo com os cânones da Igreja, nunca foi entendido como um modelo secular de expansionismo, mas é propriamente espiritual e de serviço à Igreja. Foi por isso que apoiámos e nos empenhámos pelo êxito das Conferências e Comissões preparatórias do Grande Concílio que – apesar de algumas defeções por ambição ou por hesitações – se realizou na ilha de Creta em 2016.
O Santo e Grande Concílio da Igreja Ortodoxa produziu documentos importantíssimos para a vida da Igreja e dos Cristãos de hoje e abriu caminho a ulteriores aprofundamentos de muitos temas do mundo moderno.
Não nos assusta hoje a posição de algumas Igrejas locais que criticam o nosso papel: assusta-nos mais o seu apoio a uma guerra injusta, como infelizmente ainda estamos a assistir na Ucrânia, e assusta-nos a relutância de outras Igrejas em condenar estas atitudes.

2) Diálogo e colaboração com todas as Igrejas Cristãs

Quisemos ter relações não só de estima, mas de verdadeira e fraterna amizade com os Primazes das Igrejas Cristãs. De modo particular, recordamos os encontros com três Papas e o facto de, pela primeira vez na história, um Patriarca Ecuménico ter estado presente na entronização do Bispo de Roma, o Papa Francisco, com quem partilhamos um compromisso em muitíssimos campos.
Os diálogos teológicos prosseguem e, mesmo perante as dificuldades, o compromisso continua inabalável. Podemos dizer que a dificuldade da linguagem teológica foi superada com as Antigas Igrejas Orientais e que o diálogo já está quase concluído.
Com a Igreja de Roma, foram abordados os grandes temas e, sobretudo, conseguiu-se concluir a compreensão do papel do Bispo de Roma no Primeiro e no Segundo Milénio. Também com a Igreja Veterocatólica e a Igreja Anglicana e com as Igrejas da Reforma, os diálogos prosseguem e estão a produzir excelentes frutos.

3) Diálogo e colaboração com as religiões do mundo e principalmente com o Judaísmo e o Islão

Os encontros com o Islão são, obviamente, uma constante da Ortodoxia, desde o tempo de São João Damasco, uma vez que muitas das nossas Igrejas vivem diariamente em contacto com os nossos irmãos e irmãs Muçulmanos, e também com os irmãos e irmãs Judeus.
Acreditamos que o nosso conhecimento e compreensão comuns fomentam não só a tolerância mútua, mas também a convivência pacífica e a cooperação em muitos temas da humanidade. O que vemos nestes dias no Médio Oriente não tem nada a ver com a fé destes povos, mas, com demasiada frequência, a fé tem sido invocada para justificar o fanatismo e o integrismo, que redundam muitas vezes em violência. Que ninguém ouse usar o nome de Deus para justificar qualquer violência.

4) Justiça, Paz, Unidade da Família Humana e Salvaguarda da Criação

É impensável que a paz prevaleça no mundo se as religiões não assumirem a regra de ouro da convivência, evocada no Evangelho de Lucas: "«O que quereis que os homens vos façam, fazei-lho vós também» (Lc 6,31). Não há paz sem justiça e não há justiça sem paz.
Temos de estar atentos às necessidades dos mais pobres, o que não significa apenas assistência, mas compreensão das necessidades do outro. A unidade da família humana passa pelo respeito de todos os aspetos da vida, mediante a preservação de todas as tradições culturais, religiosas, artísticas e sociais, no respeito pela própria terra e pela própria tradição. É por isso que o nosso Patriarcado Ecuménico e nós pessoalmente promovemos e participamos em todas as iniciativas que coloquem no centro da sua missão a paz, a justiça e a solidariedade.
Assim, nos últimos anos, temos também pedido a atenção de toda a humanidade para a salvaguarda do ambiente natural, com tudo o que ele contém, dom de Deus que nos colocou nele como bons administradores e não como ávidos exploradores. A nossa batalha não é ecológica, mas espiritual, pois vemos o pecado contra a Criação «tão bela». Conforta-nos o facto de estarmos acompanhados neste caminho pelo nosso irmão Francisco e por tantos outros líderes cristãos e não cristãos.

Amados irmãos e irmãs,

Com este espírito, a Igreja de Constantinopla ao longo dos séculos e nós pessoalmente também hoje continuamos o diálogo sincero e cheio de amor para caminharmos cada vez mais profundamente na relação entre os Cristãos ainda separados.
Temos de proclamar a todos os crentes e a todas as pessoas de boa vontade que o diálogo enriquece e não tira nada. Só assim conseguiremos erradicar fanatismos e conflitos, porque estamos convencidos de que «a paz de Deus supera todo o entendimento» (Fil 4,7) e que

«A caridade é paciente, a caridade é benigna; a caridade não é invejosa, não se vangloria, não se enche de orgulho, não falta ao respeito, não procura o seu próprio interesse, não se irrita, não tem em conta o mal recebido, não se alegra com a injustiça, mas compraz-se com a verdade. Tudo cobre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade nunca terá fim» (1 Cor 13,4-8).

A paz e o amor do Senhor desçam sobre todos vós.

Obrigado pela vossa atenção.

Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional – Secção São Tomás, Nápoles, 23 de novembro de 2023

Bartolomeu I
Arcebispo de Constantinopla - Nova Roma e Patriarca Ecuménico



* Arcebispo Policarpo, Metropolita Ortodoxo da Itália e Malta.