04/06/2016

Olhar sobre Lutero na véspera do V centenário da Reforma: Uma perspetiva ecuménica

Em 2017 celebram-se os 500 anos da Reforma protestante. Essa remonta a 1517, desencadeada pela publicação das 95 teses de Lutero sobre as indulgências. As celebrações dos 500 anos abrir-se-ão concretamente em 31 de outubro de 2016, em Lund, na Suécia. O papa Francisco já anunciou a sua presença nesta jornada, ao lado do bispo Munib Younan, presidente da Federação Luterana Mundial, do arcebispo de Uppsala Antje Jackelén e do bispo católico de Estocolmo Anders Arborelius. Para ajudar à preparação do cinquentenário da Reforma protestante, na expectativa de que contribua para o percurso ecuménico, deixamos um interessante texto do cardeal Walter Kasper sobre Lutero em perspetiva ecuménica publicado precisamente no contexto do V centenário da Reforma.

Lutero não era um homem ecuménico no sentido moderno deste termo. Mas também não o eram os seus adversários. Ambos viviam propensos à polémica e à controvérsia. Isto levou a restrições e rigores de ambas as partes. As questões exacerbaram-se imediatamente, desde a questão da justiça revelada no Evangelho e da misericórdia de Deus, até à questão da Igreja, especialmente à questão do Papa. Dado que o Papa e os bispos se recusam a anuir à reforma, Lutero, assente na sua compreensão do sacerdócio universal, teve que se contentar com um ordenamento de emergência. No entanto, ele continuou a confiar que a verdade do Evangelho se teria imposto sozinha e assim, fundamentalmente, deixou a porta aberta para um possível entendimento futuro.
No início do século XVI, muitas portas permaneciam abertas inclusive da parte católica. Não havia uma eclesiologia católica harmonicamente estruturada, mas apenas aproximações, que eram mais uma doutrina sobre a hierarquia do que autêntica eclesiologia. A elaboração sistemática da eclesiologia só ocorrerá na teologia das controvérsias, como antítese da polémica da Reforma contra o Papado. Assim o Papado tornou-se, de um modo até então desconhecido, a marca de identidade do catolicismo. As respetivas teses e antíteses confessionais condicionaram-se e opuseram-se umas às outras.
Somente o ecumenismo recente voltou a abrir um pouco mais a porta. O lugar da controvérsia passou a ser ocupado pelo diálogo. Diálogo não significa abandonar aquilo que até então se julgava verdade. Só podem empreender um diálogo autêntico pessoas que, não obstante cada qual tenha o seu ponto de vista, estejam dispostas a ouvir-se reciprocamente e a aprender umas das outras. Tal diálogo não é uma questão puramente intelectual, mas um intercâmbio de dons. Isto pressupõe que se reconheça quer a verdade do outro, quer as próprias debilidades, e a vontade de afirmar cada qual a sua verdade, de maneira a não ferir o próximo, sem polémicas, mas dizendo a verdade no amor (cf. Ef 4, 15), eliminado das controvérsias o veneno da divisão e transformando-as numa dádiva, de forma que ambas as partes cresçam na catolicidade entendida no seu sentido originário, progridam juntas e reconheçam em maior medida a misericórdia de Deus em Jesus Cristo, dando-lhe um testemunho comum perante o mundo.
Foi este o caminho percorrido desde o último Concílio, que portanto traçou uma senda que não pode ser invertida – uma vereda, não uma solução já pronta! O acolhimento do Concílio Vaticano II, até cinquenta anos depois do seu encerramento, ainda não chegou ao fim. O Papa Francisco inaugurou uma nova fase neste processo de adaptação. Ele sublinha a eclesiologia do povo de Deus, o povo de Deus a caminho, o sentido da fé do povo de Deus, a estrutura sinodal da Igreja e, visando a compreensão da unidade, põe em jogo uma abordagem nova e interessante. Descreve a unidade no ecumenismo não já como a imagem dos círculos concêntricos, em volta do fulcro romano, mas mediante a imagem do poliedro, ou seja, de uma realidade multifacetada, não um mosaico composto a partir de fora, mas um conjunto e, se se trata de uma pedra preciosa, um conjunto que reflete a luz que o ilumina de maneira maravilhosamente múltipla. Inspirando-se em Oscar Cullmann, o Papa Francisco retoma o conceito da diversidade reconciliada. Na exortação apostólica Evangelii gaudium, o seu «escrito programático», ele começa a partir do Evangelho e convida a uma conversão não somente cada indivíduo cristão, mas também do episcopado e do primado. Assim, subentende-se, põem-se no centro a exigência fundamental de Lutero, ou seja, o Evangelho da graça e da misericórdia, e o apelo à conversão e à renovação.
Não só a história do acolhimento do último Concílio, mas também a história da aceitação de Lutero, não está de modo algum no fim, nem sequer nas Igrejas evangélicas. Há também um esquecimento e um desinteresse por Lutero da parte evangélica. Pensemos na doutrina relativa à Ceia e à piedade eucarística. Ela demonstra que, contra Zwingli, Lutero permaneceu decididamente fiel a uma compreensão realista da Eucaristia e que não pode ficar bloqueada de modo rígido no esquema de uma religião da mera interioridade. Além disso, pensemos na compreensão do ministério do Lutero da maturidade, na sua abertura fundamental em relação ao episcopado histórico, assim como na sua afirmação de que ele teria levado na palma da mão e beijado os pés de um Papa que tivesse acolhido e reconhecido o seu Evangelho. Por isso, não é possível referir-se unicamente às afirmações polémicas do primeiro Lutero. Pelo contrário, devemos e podemos retomar novamente também a questão, fundamental para o progresso do ecumenismo, da compreensão e da relação entre Igreja, ministério e Eucaristia.
A este propósito, levar a sério os aspetos místicos de Lutero poderia ajudar a dar um passo em frente. Eles não se encontram somente no jovem Lutero, mas inclusive no mais simpático dos seus importantes escritos reformadores, Von der Freiheit eines Christenmenschen. Isto poderia abrir a possibilidade de diálogo. Com efeito, unidade e reconciliação não se verificam unicamente no cérebro, mas em primeiro lugar nos corações, na piedade pessoal, na vida de todos os dias e no encontro entre pessoas.
Digo-o com palavras mais académicas: temos necessidade de um ecumenismo acolhedor, capaz de nos levar a aprender uns com os outros. Só através dele a Igreja católica poderá realizar concreta e plenamente a sua catolicidade; vice-versa, também a instância originária de Lutero, no fundo exigência ecuménica, só poderá encontrar plena satisfação mediante um ecumenismo acolhedor. Ainda não dispomos de uma solução conjunta, mas abrem-se uma possível perspetiva e um caminho comum para o futuro. Por muito que ela possa parecer longa e cheia de obstáculos, a senda rumo à plena unidade está aberta.
A contribuição mais importante de Martinho Lutero para fazer progredir o ecumenismo não esta nas abordagens eclesiológicas que nele ainda permanecem abertas, mas na sua orientação originária para o Evangelho da graça e da misericórdia de Deus, e no seu apelo à conversão. A mensagem da misericórdia de Deus era a resposta aos seus problemas e necessidades pessoais, assim como às interrogações da sua época; e ainda hoje é a resposta aos sinais dos tempos e às questões urgentes de muitas pessoas. Só a misericórdia de Deus pode curar as profundas feridas que a divisão infligiu ao Corpo de Cristo, que é a Igreja. Ela pode transformar e renovar os nossos corações, a fim de nos tornarmos dispostos à conversão, a sermos misericordiosos uns com os outros, a perdoar-nos reciprocamente as injustiças do passado, a reconciliar-nos e a pôr-nos a caminho para nos encontrarmos de novo unidos, com paciência, passo a passo, na vereda rumo à unidade na diversidade reconciliada.
Neste sentido, gostaria de citar uma frase atribuída a Martinho Lutero. Como o dito sobre o Anticristo, também ele se insere numa perspetiva escatológica, mas é mais serena, mais suave e orientada para a esperança. «Mesmo se eu soubesse que o mundo acabará amanhã, eu plantaria uma macieira no meu pomar». No dia 1 de novembro de 2009 pude plantar uma pequena tília no jardim reconstituído de Lutero em Wittenberg; retribuindo o dom, sob o meu sucessor os luteranos plantaram uma oliveira na basílica romana de São Paulo fora dos muros.
Quem planta uma pequena árvore nutre esperança, mas também precisa de paciência. Em primeiro lugar, a pequena planta deve crescer em profundidade, lançar raízes profundas para poder resistir às adversidades do tempo. Também nós devemos ir ad fontes e ad radices. Temos necessidade de um ecumenismo espiritual na comum leitura da Escritura e na oração conjunta. Em segundo lugar, a pequena árvore deve crescer em altura, elevando-se rumo ao céu e à luz. Não podemos «produzir» o ecumenismo, não o podemos organizar, nem sequer pretender com a força. A unidade é um dom do Espírito Santo de Deus. Não podemos ter uma estima escassa pelo seu poder, não nos podemos render de modo apressado, não podemos perder a esperança prematuramente. O Espírito de Deus, que começou a obra da unidade, também a levará ao seu cumprimento, uma unidade não como nós a queremos, mas como Ele a deseja.
Enfim, a pequena árvore deve tornar-se frondosa, a fim de que os pássaros do céu possam construir o ninho nos seus ramos (cf. Mt 13, 32), ou seja, para todos os cristãos de boa vontade encontrem um lugar à sua sombra. Em conformidade com a imagem do poliedro, devemos permitir a unidade numa grande multiplicidade reconciliada, permanecer abertos a todas as pessoas de boa vontade e dar já hoje um testemunho comum de Deus e da sua misericórdia.
Hoje a unidade está mais próxima do que estava há quinhentos anos. Ela já começou. Em 2017 já não estamos, como em 1517, no caminho da separação, mas da unidade. Se tivermos coragem e paciência, no fim não ficaremos desiludidos. Esfregaremos os olhos e, com gratidão, ficaremos surpreendidos com aquilo que o Espírito de Deus nos concedeu, talvez de um modo totalmente diferente do que imaginávamos. Nesta perspetiva ecuménica, o ano de 2017 poderia ser uma oportunidade para os cristãos, quer evangélicos quer católicos. Devemos saber valorizá-la: seria um bem para ambas as Igrejas, para numerosas pessoas que alimentam expectativas a tal propósito e também para o mundo que, sobretudo hoje, tem necessidade do nosso testemunho comum.

Walter Kasper

Do prólogo de Walter KASPER, Martin Lutero. Una prospettiva ecumenica (= Giornale di teologia 387) Brescia: Queriniana, 2016.

Publicado em L’osservatore romano. Edição semanal em Português (26.5.2016) 10-11.