21/06/2016

Abre-se por estes dias o Concílio pan-ortodoxo: façamos o ponto da situação

Está a decorrer de 18 a 26 de junho em Creta o Concílio pan-ortodoxo, ensombrado pela decisão de algumas igrejas não se fazerem presentes. Deixamos em tradução portuguesa o texto disponibilizado pela rubrica «Finestra ecumenica» do Mosteiro de Bose (Itália) que permite perceber a evolução dos acontecimentos nas últimas semanas. Para um melhor conhecimento da preparação do concílio remetemos para um outro texto da mesma rubrica que anteriormente traduzimos.


Como anunciamos no primeiro número desta «Finestra ecumenica», abriu-se por estes dias o «santo e grande concílio da Igreja ortodoxa», acontecimento histórico em preparação há mais de 50 anos e a primeira convocação conciliar respeitante a toda a Igreja ortodoxa desde há cerca de 1200 anos.
Como notávamos, após a sua convocação em janeiro de 2016, com o consenso de todas as igrejas ortodoxas (convocação formalizada pela encíclica do patriarca ecuménico saída a 20 de março de 2016), os documentos conciliares preparatórios sobre seis assuntos na agenda [documentos traduzidos em italiano] começaram a circular nas várias igrejas, suscitando várias discussões e reações. Discussões muito construtivas, através da organização de numerosos congressos de estudo e fóruns de confronto, mas também, muito depressa, discussões acesas e polémicas, no contexto das franjas mais conservadoras presentes em cada igreja ortodoxa, que fizeram sentir cada vez mais a sua voz (também através de um hábil uso dos meios de comunicação social).
Durante alguns meses, contudo, a situação permaneceu substancialmente circunscrita: as discussões e as polémicas, com efeito, não superaram as fronteiras de cada igreja nacional, nem pareciam colocar em dúvida a decisão comum da convocação conciliar. Um problema à parte era representado pelo complexo contencioso canónico (em curso já há anos) entre o Patriarcado de Antioquia e o Patriarcado de Jerusalém pela jurisdição do Qatar: apesar desta tensão se manter inalterada, parecia também perfilar-se, com a mediação das outras igrejas e em particular do Patriarcado ecuménico, a possibilidade de um “congelamento” temporário desta questão que permitisse pelo menos a celebração do concílio, na esperança de que o problema, concluída a assembleia, pudesse ser resolvido de modo definitivo.
De modo imprevisto e, para um observador externo, um tanto inexplicável, a situação precipitou-se no fim do mês de maio e as polémicas em torno dos documentos começaram a assumir tons cada vez mais dramáticos. «Os metros finais da maratona pré-conciliar – disse com eficácia um comentador –, que as igrejas ortodoxas percorreram durante mais de cinquenta anos, transformaram-se num drama intenso. Quando a corrida se torna um sprint há a possibilidade dos corredores colapsarem imediatamente antes da linha de chegada ou decidirem regressar à posição a partir da qual se iniciara a corrida».
Mas o que é que aconteceu?
Prescindamos de elencar as polémicas particulares, mesmo aquelas que tiveram muitos ecos nos meios de comunicação social, mas que de facto não contradisseram na substância a obediência à vontade de uma participação comum no concílio (por ex., os pronunciamentos de alguns metropolitas do sínodo da Grécia e da sinaxe extraordinária dos hegúmenos do Monte Atos).
Os acontecimentos mais preocupantes iniciaram-se a 1 de junho, quando o Sínodo da Igreja da Bulgária pediu formalmente o adiamento do concílio, fazendo saber que não participaria na assembleia na data fixada. O motivo? A ausência da agenda do concílio de temas considerados essenciais, a falta de consenso acerca de alguns documentos (a alusão dirige-se sobretudo, ainda que não exclusivamente, ao documento sobre «As relações da Igreja ortodoxa com o resto mundo cristão») e o regulamento do concílio considerado demasiado vinculante e pouco «sinodal», juntamente a outras objeções de ordem menor.
Nos dias sucessivos seguiram-se declarações substancialmente semelhantes por parte dos sínodos das igrejas da Geórgia e da Sérvia que pediam igualmente o adiamento do concílio (esta última sem renunciar a tomar parte).
Entretanto o Sínodo do Patriarcado de Antioquia, considerando que não havia margem para uma solução da sua pendência canónica e, portanto, para restabelecer a comunhão eucarística com a Igreja de Jerusalém, declarou que não podia participar no concílio. Note-se, porém, que a posição da Igreja de Antioquia não se assemelha à das outras igrejas contrárias ao concílio: enquanto estas últimas (dizemo-lo de modo um pouco superficial) temem que do concílio possam emergir novidades e mudanças inaceitáveis, a Igreja de Antioquia é conhecida há muito pelas suas posições avançadas, tanto sobre o tema do diálogo ecuménico e inter-religioso, como sobre o dos direitos humanos e, em geral, da relação com a sociedade contemporânea.
Neste contexto extremamente tenso, a posição do Patriarcado de Moscovo permaneceu incerta até ao último momento. Num primeiro momento o seu sínodo pediu formalmente ao Patriarcado ecuménico que convocasse com urgência uma sinaxe inter-ortodoxa, antes de 10 de junho, com o objetivo de encontrar uma convergência com as igrejas que tinham manifestado a própria contrariedade; convergência considerada indispensável para o desenvolvimento do concílio.
O Patriarcado ecuménico, depois de uma sessão extraordinária do seu sínodo permanente, a 6 de junho, manifestando surpresa pelas posições das igrejas irmãs, respondeu que «não subsiste nenhum quadro normativo para uma revisão do procedimento sinodal iniciado».
Constantinopla declara assim que não tem competências suficientes para interromper o processo sinodal iniciado por vontade comum de todas as igrejas ortodoxas: o Patriarca ecuménico não tem poder de tomar decisões unilaterais (apesar das acusações de «papismo» que alguns lhe dirigem, o seu papel na Igreja ortodoxa não é comparável ao do papa na Igreja católica).
Estando assim as coisas, o Sínodo do Patriarcado de Moscovo, a 13 de junho, também pediu por via oficial o protelamento do concílio, constatando a impossibilidade de se alcançarem posições convergentes e a defeção de numerosas igrejas ortodoxas: o concílio – diz-se – deve exprimir a unidade pan-ortodoxa e não admite divisões; se há divisões, quer dizer que o concílio é prematuro e é necessário prolongar o período preparatório. Além disso, Moscovo levanta reservas ao sistema representativo adotado e deseja que o futuro concílio conte com a participação de todo o corpo episcopal da Igreja ortodoxa e não apenas de uma parte dele.
A unidade ortodoxa nesta altura parece ameaçada e muitos perguntam-se pelo que pode acontecer. O concílio é ainda realístico nestas condições? Os seus defensores insistem em repetir com convicção que o único espaço em que a unidade poder ser procurada e alcançada é precisamente o concílio. Não há outros. Como diz um pronunciamento da Igreja da Albânia: «É evidente que os problemas são tantos. Exatamente por isso deve celebrar-se o grande e santo sínodo. É impossível resolver todos os problemas, mas pelo menos alguns serão enfrentados. Pouco é melhor do que nada… O adiamento ferirá profundamente a autoridade internacional da Igreja ortodoxa». Além disso, a unidade não deve ser considerada como um pressuposto de partida, mas como uma meta para que tender: os concílios fazem-se, sempre se fizeram para procurar a unidade, não apenas para manifestar a unidade já existente. As divisões existentes não são subvalorizadas, nem tampouco exageradas.
Mas surge espontânea uma pergunta: dada a não participação de algumas igrejas, que valor canónico/normativo poderá ter este concílio? Continuará a ser um concílio “pan-ortodoxo”, mesmo sem a participação de todos?
O Patriarcado de Moscovo e as outras igrejas que partilham das suas posições afirmam que a validade do concílio está ligada à participação de todas as igrejas (a ideia deriva do princípio de unanimidade que o regulamento prevê como condição para a aprovação de todas as decisões conciliares) e que, portanto, as decisões tomadas por um concílio em que algumas igrejas estão ausentes simplesmente não têm valor.
O Patriarcado de Constantinopla, por seu lado, faz notar que o concílio foi querido e convocado unanimemente pelos primazes de todas as igrejas ortodoxas reunidos numa sinaxe em Genebra em janeiro deste ano, e que permanece como tal válido e “pan-ortodoxo”, e assim serão as suas decisões, mesmo se – graças à sua escolha – algumas das igrejas convocadas não estão presentes. As igrejas ausentes, na medida em que se abstêm de participar no concílio e de fazer ouvir a própria voz, não podem constituir um veto a respeito das decisões conciliares. De resto – note-se ainda – nos grandes concílios ecuménicos do passado também nunca estiveram representadas todas as igrejas da cristandade. Em todo o caso, a verdadeira história eclesial de um concílio começa sempre a partir do momento da sua conclusão: o modo como este concílio será considerado dependerá da receção que terá na consciência e na vida eclesial de toda a ortodoxia. Ninguém pode dizê-lo antecipadamente.
Há poucos dias, a 11 de junho, um grupo de mais de mil intelectuais ortodoxos lançaram um apelo extremo à unidade, enviando aos chefes de todas as igrejas ortodoxas uma carta aberta pela qual se pede que se avance no caminho conciliar: «Enquanto os olhos do mundo inteiro estão voltados para a Igreja ortodoxa, nós suplicamos a todos os nossos chefes que escutem o apelo do Espírito à unidade conciliar».
Mas um leitor ingénuo, neste momento, poderia avançar com uma pergunta simples: porque toda esta situação? Porque é que um concílio, que por definição procura a unidade (o seu mote é: «Chamei todos à unidade»), suscita tantas divisões?
Não nos compete aqui, como fizeram outros nestes dias nos meios de comunicação social, arriscar juízos ou tentar leituras históricas e políticas (ou até geopolíticas) para explicar os mecanismos difíceis que conduziram a esta situação complexa, nem avançar hipóteses prematuras sobre o modo como o concílio poderá ser uma ocasião de paz e de unidade, e não de ulterior divisão.
O Patriarca Kirill, numa carta enviada aos chefes das igrejas reunidas em Creta, deseja: «Não nos perturbe o facto da disparidade de opiniões das igrejas irmãs acerca da convocação do Santo e Grande Concílio… Não podemos permitir-nos que elas enfraqueçam a unidade querida por Deus, nem que as deixemos degenerar num conflito intraeclesial que introduza a divisão e a perturbação entre nós».
Queremos fazer nossas também as palavras sábias e equilibradas do arquidiácono do Trono Ecuménico John Chryssaygis: «Quando os membros de uma família ficaram isolados durante um tempo longo – no caso das igrejas ortodoxas autocéfalas, durante séculos – é natural que o medo e a incerteza ensombrem a possibilidade de conversação»; mas isto, sob outro ponto de vista, constitui também «a grandeza e beleza deste acontecimento. É como quando observamos alguém que dá os primeiros passos: podemos sorrir pelo embaraço, mas continuamos a admirar a coragem e a determinação do seu esforço».
Não devemos, pois, só abstermo-nos de julgar, mas o nosso olhar tem de poder transformar-se de olhar de juízo em olhar de admiração sincera, porque todo o esforço que os nossos irmãos ortodoxos estão a fazer não é mais do que «o esforço da caridade» (κόπος της αγάπης 1 Ts 1, 3), de que fala o apóstolo. E a caridade tem sempre um alto preço. 
O concílio de Creta é, pois, uma ocasião preciosa, um autêntico καιρός, ainda que seja talvez apenas o primeiro passo de um longo processo conciliar (de resto nos concílios antigos não era normal que um único acontecimento conciliar se desenvolvesse em mais sessões sucessivas? Não aconteceu também assim no Vaticano II e em tantos outros concílios ocidentais?). Para além das decisões que forem tomadas e dos documentos que forem aprovados, será importante o concílio enquanto tal, e será verdadeiramente «grande e santo» na medida em que se tornar uma ocasião de comunhão, uma ocasião para «olhar na cara» e «deixar desarmar» (para usar duas expressões caras ao Patriarca Atenágoras) um acontecimento que, «fugindo da mão» (por assim dizer) de cada autor humano, deixará espaço ao Deus da paz e da comunhão.
Neste Espírito, consideramos que a única atitude justa e evangélica para os cristãos que olham do exterior (mas com íntima comparticipação) para este acontecimento é a de uma proximidade fraterna que, abstendo-se de qualquer juízo, se traduza numa oração intensa e convicta, na consciência de que o que aqui está em jogo supera a todos. O concílio é o espaço propenso para que o Espírito possa soprar; não é só obra humana, mas está nas mãos de Deus. Repitamos com o salmista: «É tempo de agires, Senhor!» (Sl 110, 126).
Convidamos todos os que no seguem, portanto, a unirem-se à nossa oração para que o Senhor faça descer o seu Espírito, dissolva cada dureza, concilie as divisões, crie caminhos de unidade, para que todas tenham a disponibilidade para «escutar o que o Espírito diz às igrejas» (Ap 2, 7).