20/01/2022

Teologia e justiça

A reverenda Anne Burghardt, da Igreja Evangélica Luterana da Estónia, é a primeira mulher e a primeira pessoa da região do centro e leste da Europa, a ser eleita Secretária-Geral da Federação Luterana Mundial. Teóloga e pastora, iniciou o seu mandato em novembro de 2021, substituindo o reverendo Martin Junge, que tinha estado à frente da comunhão mundial de 148 Igrejas luteranas desde 2010. Burghardt, de 46 anos, esposa e mãe de dois filhos biológicos e de um refugiado palestiniano adotado, reflete sobre o seu percurso até à liderança e os dons particulares que espera introduzir no seu trabalho.
 Publicado texto no mensário Donne Chiesa Mondo (janeiro de 2022) do jornal L'Osservatore Romano, traduzimo-lo e divulgámo-lo em português no contexto da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, como forma de conhecimento de outras Igrejas cristãs.


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O meu país, a Estónia, é conhecido como uma das nações mais secularizadas do mundo. Assim, um dos dons com que certamente contarei é a experiência de partilhar a palavra de Deus com as pessoas numa sociedade secularizada. Nasci em 1975, durante a ocupação soviética, e cresci num ambiente familiar secularizado. Os meus avós tinham foram membros ativos da Igreja Luterana; em 1949, a minha avó foi deportada para a Sibéria juntamente com o meu pai e a minha tia. Como muitos outros que passaram por esse tipo de experiência, os meus avós hesitaram em envolver ativamente os filhos na vida da Igreja, por estarem preocupados com as consequências que isso poderia ter num Estado agressivamente ateu.

Convites e percursos


Foi um convite para a confirmação de um amigo do secundário que me colocou no caminho da ordenação - um caminho em que eu teria tido dificuldade de acreditar se alguém mo tivesse referido há 30 anos! A minha escola era uma das poucas que na época oferecia cursos de educação religiosa, e as discussões com os meus colegas de turma acenderam dentro de mim uma centelha. Todos estavam à procura de uma identidade, tanto a nível nacional como pessoal, e eu interessei-me cada vez mais por questões religiosas.
Olhando em retrospetiva para o meu percurso de fé, diria que alguns vivem um caminho de crescimento natural no seio de uma família cristã tradicional. Há quem se converta de repente, como o apóstolo Paulo. Há ainda outro caminho, que é o meu, de crescimento lento mediado por muitas questões, passo a passo, cada vez mais enraizado na fé. Em 2004, dez anos após aquele convite que recebi do meu amigo da escola secundária, dei por mim a ser ordenada pastora na Catedral de Santa Maria em Tallinn, porque senti que queria servir a Igreja com os dons que me tinham sido dados.

Ecumenismo e formação


Entretanto tinha estudado teologia na antiga Universidade de Tartu, passando também tempo em Berlim e na Baviera, onde preparei o meu doutoramento, tendo estudado as liturgias ortodoxas. Tendo feito a minha formação pastoral, ensinei em seguida no Instituto de Teologia em Tallinn, que inclui uma cátedra de teologia ortodoxa, um raro exemplo de cooperação ecuménica de alto nível numa instituição académica eclesiástica. Em virtude do meu interesse pelo mundo ortodoxo, tornei-me membro da primeira comissão de diálogo luterano-ortodoxo na Estónia e fiz parte da Comissão Conjunta Global Luterano-ortodoxa. Depois trabalhei durante cinco anos como secretária para as relações ecuménicas na sede da Federação Luterana Mundial, em Genebra, supervisionando o diálogo com os anglicanos e os menonitas, bem como, em seguida, com os cristãos ortodoxos e pentecostais. Durante esse período ajudei também a coordenar os preparativos do V Centenário da Reforma, que assistiu à oração do Papa Francisco lado a lado com os líderes luteranos, na cidade sueca de Lund, onde foi criada em 1947 a Federação Luterana Mundial. Penso que, sendo embora a Federação Luterana Mundial uma comunhão confessional de Igrejas, sempre esteve muito empenhada na unidade dos cristãos, e a sua constituição foi fortemente influenciada pelo movimento ecuménico mais amplo do início do século XX. Cada comunhão cristã contribui com os seus dons especiais para a Igreja global, pelo que a nossa tradição luterana também dá o seu contributo, sublinhando a centralidade da graça incondicional de Deus e a liberdade que dela deriva.
Outra característica dos reformados foi a importância atribuída à educação para partilhar o Evangelho e encorajar o pensamento crítico. Estes princípios também são centrais na minha compreensão pessoal da missão da Igreja no mundo contemporâneo. Uma das principais inovações, durante o período em que fui diretora para o desenvolvimento no Instituto de Teologia de Tallinn, foi a criação de um mestrado em estudos de cultura cristã. O curso foi concebido como missão académica para quantos trabalhavam no mundo secular, mas queriam compreender algo mais a respeito da própria história e da tradição cristã.

Pensamento crítico para combater a polarização


O programa foi muito bem-sucedido, tendo por base a herança do Instituto de Teologia que permaneceu aberto durante todo o período soviético. Nesses anos, o Instituto forneceu uma formação académica que garantiu aos pastores preparação para pensarem de forma diferente e não apenas a preto e branco. Hoje em dia, atendendo a que muitas sociedades enfrentam uma polarização crescente, é essencial que a Igreja não defenda um paradigma a preto e branco, mas que reflita uma forma de pensar mais diferenciada. Um dos meus objetivos passa por reforçar a rede de educação teológica e de formação da Federação Luterana Mundial, colocando amplamente à disposição materiais para os estudantes que não têm acesso a recursos e formação em pensamento crítico. Ao fazê-lo, espero partilhar alguma da minha experiência de investigação e formação em diferentes campos, incluindo a resolução de conflitos, a assistência psicológica em matéria de VIH e o desenvolvimento das comunidades nas zonas rurais.
Outro objetivo que tenho passa por alargar o debate teológico sobre a compreensão luterana da ordenação, para apoiar as Igrejas que estão a caminhar para a admissão de mulheres ao ministério ordenado e a lugares de liderança. Como primeira mulher a liderar a Federação Luterana Mundial, penso que há mulheres em muitas regiões e em muitas das nossas Igrejas que se sentem encorajadas pelo meu exemplo. Na Estónia, as primeiras mulheres foram ordenadas pastoras há mais de meio século, mas creio que a minha nomeação marca um momento histórico para a nossa Igreja e para a nossa região. Ao mesmo tempo, porém, aguardo com impaciência o dia em que o género deixará de ser um tema no debate sobre lugares de liderança nas nossas Igrejas ou na sociedade.

Teologia, missão e justiça


Entre as principais tarefas que terei de enfrentar, enquanto nova Secretária-Geral, conta-se a supervisão dos preparativos da próxima Assembleia da Federação Luterana Mundial, prevista para Cracóvia em setembro de 2023, com o tema «Um só corpo, um só espírito, uma só esperança». A par do trabalho teológico e ecuménico, é necessário definir orientações para o ramo assistencial e de desenvolvimento da Igreja, conhecido como LWF World Service. Operando em 27 países, frequentemente em locais remotos e de difícil acesso, o nosso World Service é conhecido pelo seu trabalho humanitário profissional, que proporciona uma ligação entre as comunidades locais e a tutela internacional da justiça, da paz e da dignidade humana, especialmente para os mais vulneráveis. Durante muitos anos fomos um dos principais parceiros confessionais no âmbito operacional do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e trabalhámos em estreita colaboração com vários parceiros ecuménicos, incluindo a Caritas Internationalis, bem como com outros grupos confessionais, como a Islamic World Relief. A situação dos refugiados, que já preocupava os fundadores da Federação Luterana Mundial no seguimento da II Guerra Mundial, continua a ser ainda hoje uma das nossas principais preocupações no trabalho com as comunidades vulneráveis. Existem atualmente mais de 80 milhões de pessoas no mundo deslocadas internamente ou forçadas a fugir do seu país devido a conflitos, pobreza, perseguição ou à crise climática. Ao mesmo tempo, assistimos à ascensão de regimes autoritários, a uma lentidão das ações empreendidas pelos Estados para reduzir o impacto das alterações climáticas e a uma relutância em respeitar os direitos humanos, particularmente os direitos das mulheres. Outra preocupação é a desigualdade persistente no acesso à vacina contra a COVID em todo o mundo, assim como o facto de as próprias vacinas estarem cada vez mais a ser transformadas numa arma numa guerra de desinformação, somando-se à polarização existente e às teorias da conspiração. Como Federação Luterana Mundial, continuamos a lutar por soluções justas e de longo prazo que sejam coerentes com os objetivos de desenvolvimento sustentável, que enfrentem as causas subjacentes à pobreza, para que todos possam usufruir dos seus direitos e viver uma vida digna.
Tendo crescido numa época em que os direitos e a dignidade eram sistematicamente espezinhados pelo regime soviético, acredito que as nossas Igrejas podem e devem desempenhar um papel essencial na defesa destes valores cristãos na praça pública. Num mundo cada vez mais fragmentado, somos chamados a discernir a vontade de Deus em situações complexas e a ser agentes de mudança positiva e de reconciliação. Como cristãos, temos de passar antes de mais das palavras aos atos, respondendo à vontade de Cristo de unidade e cura no nosso mundo fraturado.

Anne Burghardt
Donne Chiesa Mondo (Janeiro de 2022) 8-10.