13/04/2022

O grande sonho de Kirill: um Carlos Magno do Oriente

Entrevista de Cesare Martinetti a Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose

A segunda guerra ucraniana, consubstancial e paralela à guerra no terreno, é uma guerra feroz entre as Igrejas que acreditam no mesmo Deus. O Patriarca Kirill de Moscovo, ao apoiar com paixão a guerra, ofereceu a Vladimir Putin uma cobertura teológica difícil de compreender no Ocidente. Enzo Bianchi, fundador da comunidade de Bose, tem sido protagonista do diálogo entre os católicos e o Oriente desde os anos 70, quando Kirill veio pela primeira vez a Bose.

Alguma vez imaginou que aquele jovem e brilhante padre ortodoxo entraria nos tanques de Putin em guerra contra os cristãos ucranianos?

Fiquei surpreendido. Conheci-o bem. Encontrei-me com ele pela primeira vez no final dos anos 70, quando acompanhou o Metropolita Nicodim. Depois veio novamente aos congressos ecuménicos de Bose: lembro-me dele muito convicto e ativo no diálogo ecuménico, um homem aberto que conhecia bem o Ocidente. Mais tarde encontrei-me com ele em Moscovo, em 2004, quando fui enviado pelo papa Wojtyla numa delegação com o cardeal Kasper para devolver o ícone roubado de Nossa Senhora de Kazan. Houve um acolhimento extraordinário na esplêndida Catedral de Cristo Salvador.

E come explica a sua adesão à guerra?

Surpreendeu-me porque pensava-se que estava determinado em manter vivo o espírito ecuménico, sobretudo depois do encontro em Cuba com Francisco, no qual – temos de dizer – o Papa se humilhou, ao aceitar vê-lo praticamente de fugida numa sala de aeroporto. Mas não esqueçamos que os ortodoxos têm desconfianças do Papado e, enquanto Igrejas, sentem-se irmãs débeis perante a irmã forte, a Igreja católica, muito organizada e presente em todo o mundo.

Mas há algo mais nos sermões de Kirill: ele forneceu uma justificação teológica para a guerra de Putin. Porquê?

Tudo o que debatemos no Ocidente graças à nossa modernidade chega aos ortodoxos russos numa zona de sombra que é a ocidental-americana, ou seja, o grande e histórico inimigo. Durante muito tempo, para eles, o ecumenismo foi um produto do Ocidente, que provinha da pluralidade das confissões, da tolerância, realidades para eles desconhecidas. O que para eles é uma luta metafísica entre o bem e o mal e uma manifestação do Anticristo, para nós é uma aquisição de direitos civis (por exemplo, no que diz respeito aos homossexuais). Por outro lado, nós católicos pensávamos o mesmo há 50 anos, nem mais nem menos. E estou convencido de que uma parte da Igreja católica ainda pensa assim. Só não há coragem para o dizer publicamente.

E como reagiu a Igreja ucraniana à cruzada de Kirill?

Entretanto, é preciso dizer que existem quatro Igrejas cristãs na Ucrânia: uma ortodoxa em comunhão com Moscovo, outras duas ortodoxas, uma em comunhão com Constantinopla e a outra patriarcal autocéfala, e finalmente uma católica uniata, isto é, de rito bizantino. Apenas o Patriarca Onufriy, metropolita da Igreja ucraniana em comunhão com Moscovo, expressou uma posição sensata, convidando os fiéis a defenderem a pátria ucraniana, mas a não odiar o povo russo. Ao invés, as hierarquias das outras Igrejas responderam abençoando armas, convidando os combatentes a esmagar o inimigo e a amaldiçoar o Patriarca Kirill. Estamos no meio de uma guerra de religiões, tudo menos ecumenismo!

Ouvindo estes relatos, parece que estamos a recuar séculos. Como é que isto é possível?

Para compreender isto é necessário recordar um pouco história e é isso que falta no debate sobre Kirill. As Igrejas ortodoxas não são nossas contemporâneas: viveram sob o regime soviético ou sob o império otomano e isto impediu-lhes o acesso à modernidade. Faltou-lhes o que o Iluminismo e a Revolução Francesa representaram para nós. Quando o comunismo caiu, a Rússia foi invadida por missionários polacos e organizações católicas ocidentais que faziam proselitismo. Os ortodoxos reagiram defendendo o seu território "canónico", um conceito desconhecido para nós católicos.

E o que é que aconteceu depois da revolução ucraniana?

Por vezes os padres russos foram atacados, as igrejas foram fechadas, os religiosos perseguidos e, mesmo recentemente, o Parlamento ucraniano aprovou leis de persecutórias no que respeita aos ortodoxos em comunhão com Moscovo. Então esta guerra religiosa foi sendo preparada. Tenho muitos contactos com religiosos russos e ucranianos que me contavam que havia colunas de tanques e tanques com mísseis a entrar na Ucrânia vindos da Polónia.

Mas o que é que Putin fez para merecer uma “sinfonia” tão entusiástica da parte de Kirill?

Putin ao longo dos anos tornou-se o grande protetor da Igreja russa, em todo o mundo. Ele é uma espécie de Carlos Magno do Oriente. Diz que é cristão, nunca falta aos ritos. Apoia e financia a reconstrução de igrejas ortodoxas no Médio Oriente, reconstrói as destruídas pela guerra na Síria; em Jerusalém financiou obras enormes, e no Monte Athos, na Grécia, restaurou o grande mosteiro de Panteleimon, em ruínas desde os anos 20. Tudo isto faz com que a Igreja se incline perante ele. E há bispos ainda mais patrióticos do que Kirill, como o metropolita Tikhon, o pai espiritual de Putin que, segundo se diz, pode vir a ser o próximo patriarca.

Porque é que a religião é tão importante naqueles países?

Porque faz parte da identidade, como na Polónia e na Hungria. O único país em que já nada importa é a Bulgária, porque o comunismo conseguiu fazer um deserto.

Uma religiosidade que sobrevive num mundo onde as coisas se resolvem pela guerra e onde as manifestações de fé são físicas. Vejam-se as filas mesmo na novíssima catedral de Moscovo para o beijo de relíquias. Isto é espiritualidade ou superstição?

É o Oriente, onde a fé não é apenas um fenómeno intelectual. Nós inventámos a fórmula da "fé pensada", não só madura e profunda, mas que fornece razões através do pensamento. No Oriente não têm esta dimensão, para eles a fé tem uma profundidade espiritual que envolve a pessoa toda. Não são capazes da oração mental. Rezam com o corpo, genufletem, fazem o sinal da cruz continuamente, precisam de beijar os ícones e nas igrejas não há bancos, porque é preciso rezar num estado de vigilância física. Os seus santos falam com ursos, com árvores e com a natureza.

Incompreensível para nós?

Sim. A religião sem o uso da razão torna-se facilmente magia ou fanatismo. Dizia-o Bento XVI: o Iluminismo foi um grande dom, porque, ao dar primazia à razão, libertou a religião do fanatismo e da magia.

Qual é o seu motivo de esperança?

Eu sou amigo do metropolita Hilarion, o número dois do Patriarcado, responsável pelas relações com as Igrejas estrangeiras e muito próximo do Patriarca. Ele é um monge espiritual e intelectual de valor, veio a Bose, fizemos viagens ecuménicas juntos, e eu publiquei os seus livros na minha editora. De momento ele está em silêncio, e isto significa que nem toda a Igreja está plenamente de acordo com Kirill. Acredito que, mais cedo ou mais tarde, Hilarion fará ouvir a sua voz, que é certamente uma voz ecuménica e de paz.

La Stampa (3 de abril de 2022).

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